quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

 

Coprocultura

 

No bolso do casaco, dentro de um frasco selado, com o meu nome

E o número de identificação pessoal, um pedaço de merda,

Quando foi feita a colheita, pergunta-me a técnica,

Há uns minutos, ainda estava quente, ainda era eu,

Mais do que um cabelo que acaba de se soltar do couro,

Naquele pedaço de cagalhão, tentarão encontrar a razão

Para as constantes crateras ardentes nas paredes do meu estômago,

Poderei agora voltar a acalmar os geysers de ácido

Um comprimido amarelo de cada vez, não ajudam as longas

Horas de trapezismo, tentando equilibrar vidas alheias

Em agulhas, a acidez do sangue com aspiradores de duas pressões,

Acrescentar a cada empurrão de êmbolo vida, aliviando ao mesmo

Tempo a dor dessa vida de trapézio, o ácido aumenta

E o mediastino acende-se numa dor ao lado do coração,

Distante de tudo o mais, o calor do verão impossível, os amores esquecidos,

Os amigos vizinhos da infância, o Sol limpo do futuro, manhãs puras,

E o ano que passa, dentro de um frasco selado, ainda quente, um pedaço de merda.

 

31.12.2020

 

Turku

 

João Bosco da Silva

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

 

Glória

 

Ainda crescerão as rosas como se quem as plantou nunca tenha sido,

O senhor Zé, que sempre me convidava à adega, para partilhar comigo

O seu tesouro, guardado numa ruína escura e poeirenta, onde adivinhava

Teias de aranha e promessas de cirrose como a do avô morto,

Pena nunca ter tido idade para lhe agradecer sem o não atrás,

Engolir com gosto a zurrapa sagrada daquelas pipas humildes,

Sentir esgaçar a alma esôfago abaixo, até cair no estômago

Como um consolo doloroso ou uma doçura triste, o que resta de nós,

Quando só as rosas persistem contra uns muros cariados,

Apontando janelas abertas a céus arruinados e cinzentos,

Estamos aqui e já não estamos, ficamos espalhados por memórias

Inesperadas, uns vasos com flores em cima de um tanque que ninguém usa.

 

29.12.2020

 

Turku

 

João Bosco da Silva

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

 

Lama e Esperma na Primavera

 

para Hanna,

 

Esperar numa manhã fria que abrisse a estação de serviço,

A promessa de um café quente e a tua chegada, o lago ondulante,

Com ar recriminador, nunca fui de acordar cedo, para o que fosse,

Estacionas o carro emprestado pelo teu homem,

Sais com a naturalidade desenvolta de sempre e vens ter comigo,

Na cafetaria da estação uma empregada que conheces,

Traz-nos café, não sei que mentira lhe atiras com os dentes malandros,

Eu a cozer por dentro uma úlcera ou qualquer outro aperto,

Não fosse a vontade dos tomates maior, ou a vontade de cuspir

No amor alheio, não sei, mais tarde no carro como se me desses

Uma boleia inócua, entras por um caminho de terra,

A manta nos bancos de trás, eu tinha ficado de trazer os preservativos,

Mas nem isso e a manhã não estava para piqueniques,

Páras o carro ao lado de um aeródromo abandonado,

Saímos e entramos nos lugares de trás, beijas-me como quem começa

Uma coreografia ensaiada, o carro cheira a homem, óleo, pó, botas de trabalho,

Mas logo desaparece, quando mergulho a cara nas tuas mamas brancas,

O gosto a carne leitosa domina o ar, tento descer e provar-te a cona,

Mas procuras-me a gaita, sem oral, dizes, vamos foder apenas,

Quase como uma regra moral qualquer, enfias-me a tripa de latex

No caralho e montas-me, fodes-me com um desespero estranho,

Gemes com uma doçura que nunca teria imaginado em ti,

Enterras-me a cara no teu pescoço de leite e rebuçado,

Começas a vir-te quase num choro alegre, aproveito e deixo-me verter,

Aliviado, dentro do saco, não aguentava mais aquele trote,

Arranca-mo, limpa-me a gaita com um lenço de papel, embrulha-o

No lenço e atira-o pela janela, para a manhã fria, veste-se

E entra para o lugar do condutor, esperando por mim,

Eu ainda lutando com a melancolia pós-coito, de calças no fundo dos joelhos,

Ridículo, o cheiro a casaco velho de flanela regressa,

Vamos, diz-me ela da frente, acabamos atolados na lama do caminho,

Durante quase uma meia hora tentamos tudo, acabamos por nos resignar,

Liga a uma colega nossa, o marido virá de tractor, eu salto para a floresta,

E ando à deriva naquele solo pantanoso de primavera nórdica o que

Pareceu uma eternidade, a manhã tornou-se quente, finalmente transpiro,

Atravesso a pista de aterragem conquistada por ervas daninhas,

Outra eternidade e o Sol começa a apertar, atravesso um campo

E chego finalmente a uma estrada, ela liga-me e calças de equitação vêm ter comigo,

Parámos numa clareira, estende a manta, trazia uns pães e cervejas,

Comemos e bebemos ao Sol, como se tivéssemos acabado uma lavoura,

Passados uns dias o homem regressou, passadas umas semanas,

Soube que estava grávida, nunca mais voltamos àquele aeródromo,

Nunca mais fodemos, serei ainda uma memória lamacenta, a foda kármica mais rápida.

 

23.12.2020

 

Turku

 

João Bosco da Silva

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

 

Encomenda

 

Hoje fui aos correios buscar uma encomenda vinda de Portugal,

Uma caixa de papelão, castanha, enviada há quase um mês,

Em pandemias tudo parece mover-se a passo de caracol,

Falta a baba com tanto açaime no focinho, mal se respira com medo,

Na caixa um frasco revestido com o carinho rendado de minha mãe,

Dentro orégãos, daí talvez o atraso, além do medo a desconfiança,

Três ou quatro postas de bacalhau que regressam à Escandinávia,

Para me ajudarem a passar um Natal solitário e um saco de plástico

Com castanhas, contudo, no nó do saco, dois cabelos longos,

Um castanho e outro prateado, de minha mãe, sorrio finalmente

Com tal inesperada visita, pego nos cabelos e guardo-os no livro querido

De um conterrâneo, há tesouros mais importantes no acaso,

Pode parecer pouco, mas hoje, depois de muito tempo, toquei a minha mãe.

 

04.12.2020

 

Turku

 

João Bosco da Silva

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

 

Dançar à Beira de Abismos

 

Esta dança de palavras, luares e amanheceres adormecidos,

O rio no verão, o apetite que não chega às mãos,

A falta de vontade quando se abrem as pernas do mundo,

A sede nos copos cheios que aquecem, esta dança,

A escuridão ao acordar, o peito que incha, mas para um

Salto no vazio, o silêncio que semeia esquecimentos,

Para que não custe tanto a apneia, esta dança de palavras,

Estes sonhos gelados sacudindo a adolescência como caspa,

A vontade da derrota só para sentir a queda,

E que se foda o mundo, que se foda o mundo,

Que se foda quem ler esta dança de palavras,

Se não tiver mais nada que fazer, olhar abismos,

Na esperança de que quem dança, olhe de volta o espelho comum.

 

27.11.2020

 

Turku

 

João Bosco da Silva

 

Quase Poema

 

Só os vivos são capazes de poesia, de palavras vivas,

Encontram o calor do sol no gelo de dezembro,

O amor nas lágrimas de um lenço, mas quem raios usa lenços,

De papel são as promessas, como o mesmo gelo,

Que depois da hora do almoço já pinga em aborrecimento,

Só os vivos são capazes de poesia, por isso não sei como

Ainda consigo sacrificar mais uma memória

E fingir um poema, perguntam-me há quantos anos

Sou velho, digo que devo ter recebido uma alma em segunda mão,

Se ao menos conseguisse encontrar beleza no vazio

De um coração como no de uma bilha de gás.

 

27.11.2020

 

Turku

 

João Bosco da Silva

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Debaixo da Figueira 

 

No verão a sombra daquela figueira enchia-se de diferentes sotaques, 

De netos e filhos, havia vida atrás daquele muro, que os gatos ignoravam 

Como qualquer fronteira ridícula, às vezes quando não havia outras vozes, 

Ouvia-se falar com o cão ou com as galinhas, nos invernos havia um silêncio frio 

Debaixo da figueira nua, a humidade aos poucos depositava-se nos ossos, 

Fazendo pesar os anos e com o peso dos anos, cada vez menos vozes 

Debaixo da figueira, nas tardes de canícula, quando me julgava só, 

Debaixo do marmeleiro, matraquilhando contra mais uma ressaca, 

Ouvia o roçar dos ramos da figueira no muro, não era um gato, 

Não era o vento, então ouvia-a a ela, que me chamava e deixava 

Sobre o muro um saco com um tupperware, quando adivinhava 

Que eu por ali, logo apareciam uns dormidos, depois surgiam 

Umas análises que impotente lia e dizia o que já era sabido estar mal, 

Aqueles malditos diabetes e tinha razão, nunca lhe reconheci uma palavra 

Que me ofendesse, mesmo quando era garoto e ignorava, como os gatos, 

Fronteiras e muros, envelheceu debaixo daquela figueira, chamava-se Esperança. 

 

Turku 

 

16.11.2020 

 

João Bosco da Silva

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

 

Anosmia, Dióspiros e Vestido Branco

 

Sentado, quase vinte anos depois, debaixo daquele diospireiro,

Tu sais da sala fresca, daquele verão quente, vestido branco,

E vens sentar-te no meu colo, abraçando-me, era apenas isto,

Apenas isto tudo, nós inteiros como as nossas mãos,

Primeiro abraço-te e enterro a cara no teu cabelo, inspiro fundo,

Tento controlar a ereção que nasce, o pulsar que me insufla

Em direção às cuecas que me tocam a braguilha, porque tenho outra

Vez dezasseis anos e não sei como saltar da ponte,

Mas tu sentes-me crescer debaixo de ti e apertas o teu corpo

Com mais força, então lembro-me que estou farto de cabelos brancos,

Enterro mais a cabeça no teu cabelo, beijo o teu pescoço,

Levanto o vestido e procuro a pele das tuas nádegas,

Que aperto em direção à minha latejante vontade, inspiro fundo,

Não sinto qualquer aroma, puxo-te mais para mim, abres-te,

Então abro os olhos e tu não estás, continuo debaixo

Do mesmo diospireiro, a porta da sala está fechada e é inverno,

Numa vila deserta e cinzenta, já tinha percebido que tudo era um sonho,

Nunca senti qualquer cheiro nos sonhos, mesmo tendo o teu tatuado no hipocampo,

Fiquei ali sentado, no sonho, à espera, quase vinte anos,

Raramente penso em ti, contudo, sabendo-me a sonhar,

Ali fiquei à geada até acordar, eu que nunca gostei de dióspiros.

 

13.11.2020

 

Turku

 

João Bosco da Silva

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

 

Improbabilidade de Celia Cruz

 

Em África decidi que não te podia amar mais, enquanto emborcava Tuskers

E lia sobre uma guerra colonial tão estrangeira para mim, como o amor,

Seguindo por cima do livro os passos lentos da turista alemã,

Em direção ao chuveiro, atravessando um ar espesso como o cantar

Quente dos grilos, enquanto escrevinhava dentro daquele Toyota Hiace,

A contagem decrescente dos dólares e dos xelins, aquela pulseira

Acabou por se partir noutras violências consentidas, permanece espalhada

Numa gaveta do meu quarto de adolescente, à espera de um elástico,

Na companhia das cartas de amor que me escrevias, mi riño, la vida es un carnaval,

Aqueles montes, dizia-te, parecem uns para os lados de Fornos de Ledra,

Encontro sempre algo de familiar nos montes, mesmo que estejam pintados

Com outros verdes, o Sol é o mesmo e o amor esgota-se sempre,

E tinhas razão logo desde o início, no hay que llorar, que la vida es un carnaval,

Y las penas se van cantando, mas eu sempre fui fiel ao silêncio das palavras.

 

 

06.11.2020

 

Turku

 

João Bosco da Silva

 

Encornar pelo Seguro

 

Acordar, às vezes chega, com um remorso trazido em segunda mão de um sonho,

Uma ex-namorada, confrontando-te com um erro de cálculo, podia ter sido,

Mas não tinha sido, desaparecendo numa festa familiar, impossível,

Sem os muros de pedra debaixo de macieiras, onde ficou aquela fome de ruivas,

Os olhos verdes que hoje, só os mesmos quando fecho os meus,

Ou olho uma fotografia perdida, reconheces quem tenho aqui, disse,

No sonho, e ao lado uma mulher mais ou menos da idade dela, quando jovem,

Totalmente desconhecida, alguém que teria fodido com gosto,

Como tantas outras cujos rostos tento reconstruir como um puzzle forçado,

Não, nunca a vi, um rosto como tantos outros que passaram pela juventude,

Uns de joelhos, outros apenas alguém que passou no autocarro,

Aquele remorso reciclado, mas foste tu que me ensinaste a trair,

A foder como vingança, ou para assegurar a honra na vergonha,

O teu paradoxal sorriso inocente, nesses mesmos lábios, que me contavam,

Que tinhas fodido este e depois aquele, e o que mais me doía era a tua sinceridade,

A naturalidade com que me arrancavas as fibras da ilusão, que podia fazer se te amava,

A não ser foder estranhas em casas de banho públicas, só para equilibrar

O peso dos cornos nos teus e manchar os nossos lençóis com o esperma

Que escorria de corpos breves, quando tu não estavas e eu só temia os teus lábios.

 

06.11.2020

 

Turku

 

João Bosco da Silva


quinta-feira, 29 de outubro de 2020

 

Obra ao Cinzento

 

Já vi morrer mais gente, do que gente que fodi, o que é triste,

Bebo, tenho bebido, sem ter como intenção libertar o medo dos olhos,

Os anos oitenta foram há vinte anos, tal como o virar do milénio,

Que há a dizer sobre isto, a não ser que é verdade a teoria de Einstein,

O Michael Jackson nunca morreu e o Saramago continua a ser

O único nobel português vivo, foi tudo num virar de estações,

As madrugadas sabem a fastio lento e longo, uma espuma cinzenta

De mercúrio preguiçoso, todos os acentos, um aborrecimento adiado,

Um gemido fingido depois dum suspiro açaimado, Annie are you ok,

Vamos pedindo mais uma francesinha, sorrindo a velhos amigos,

Fingindo que o rio passa e a caravana ladra à frente dos bois,

Mas nada está bem, não se somam sonhos, contam-se vontades,

Fracas, escorregadias, como pérolas falsas de um colar que se rompeu

Numa casa de banho de deficientes, na pausa de um filme sobre

Um livro de Tolstói, sujas, pequenas, as pérolas, depois

De outras pérolas engolidas à pressa, para regressar ao tédio do filme,

Anna Karenina, are you ok, are you ok, Annie,

Meia dúzia de pérolas de plástico no bolso, e alguém diz que não,

Não se continuará a adiar a morte, duas miligramas de adrenalina,

Em vão, cento e cinquenta joules num coração para o talho,

Outro que bate, contente, um necromancer moderno e licenciado,

Para se vir numa foda e perguntar, fodi bem, não fodi, sim fodeste,

Agora que te engoli, sonha meu rei, praias brasileiras, ressacas de coco,

Laranjas colhidas da árvore, vespas da terra, dorme, necromancer,

Poeta, anjo do apocalipse, vergonha de copo vazio e alma de garoto

A quem num dia de chuva, outros dois da quarta classe, lançaram numa fossa sanitária.

 

29.10.2020

 

Novigrad

 

João Bosco da Silva

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

 

Colegas de Trabalho

 

Tanto amor pelo plástico colorido, pela carne borbulhante como sangue aceso,

O helicóptero leva mais um corpo meio apagado ao cansaço dos hospitais centrais,

Alguém tenta dormir sobre uma almofada babada, depois de duas miligramas

De adrenalina e cento e cinquenta joules até um pulso, um ritmo acendido

Num corpo sem gás, amanhã alguém decidirá que não vale a pena,

Conseguimos adiar mais uma morte, foi apenas isso, como acordar mais um dia,

Conseguimos adiar mais uma morte, seja num corpo sem morte anunciada,

Ou num corpo cujo mistério espera o acidente do acaso, a carne borbulhante,

As nádegas palpitantes nas pupilas mal iluminadas, no sonho, a vontade

De um abraço estrangulador, aquele cabelo loiro, espesso como o esperma

Prometido num olhar, alguém diz que tem o terceiro filho a caminho,

Nunca ninguém acusou que o que engoliu lhe tenha impedido a próxima menstruação,

Aquele cabelo espesso como a vontade impossível, quinze anos mais jovem,

Mas nas papilas a vontade clara da decadência do abuso consentido,

Será que me sonhas agora, como eu sonhei aquela miúda das limpezas,

Naquele verão ainda longe do outono, enquanto te ofereço num copo minúsculo

Um líquido branco, que te cura da azia causada pela mixórdia de leite azedo

Que engoliste do teu jovem marido, e aceitas, dizendo que tanto, tragas tudo.

 

 

Turku

 

29.10.2020

 

João Bosco da Silva

Vazio em Copo Sujo

 

Estou demasiado cansado, podia ir dormir, mas estou demasiado cansado,

Vou em vez, abrir mais uma garrafa de vinho, chupar o passado

Da medula óssea, passar a língua nos dentes e fingir, que de olhos na parede,

Estou outra vez lá, onde fui, com as unhas cravadas no musgo fresco,

As calças de ganga rasgadas pelo granito das fragas, chumbos quatro e meio

Entre os dentes, com os pardais na mira, aquelas pernas brancas das procissões

Do verão, o cheiro do único quiosque da terra a jornal fresco e banda-desenhada,

O amor num toque monotónico quando o saldo quase zero,

Contar os caracteres, esperando que o amor não demasiado longo,

Em vez de, uma garrafa de Bordeux, mais uma garrafa de Bordeux,

Antes era apenas uma cor na boca da minha mãe, cor de vinho quase,

Hoje estou demasiado cansado, até para dormir, porque para dormir

É preciso força para estar vivo e há dias do tamanho de anos,

Que até o sono me dá vontade de uma cama fria, um corpo ausente,

Mais um ridículo universo apagado, um copo vazio, lábios lívidos esquecidos.

 

 

Turku

 

28.10.2020

 

João Bosco da Silva


 

Auto dos Danados

 

 

Acordar cedo para acender o lume, dentro o vazio, o resto crepita lá fora,

Uma geada épica como a fome de batatas, a roupa estendida, bacalhaus

Que alguém esqueceu, como amores que aos poucos se esquecem,

Não fosse a insónia e a falta de pinhas para acender outros lumes,

Os vizinhos apertam as cafeteiras e aproximam as garrafas de aguardente

Antes de pegarem nas enxadas para cavarem a terra ainda dura,

Os dedos ainda azedos, cheira tudo ainda a cu lavado, amor enquanto dura,

As macieiras imaginam doçuras ainda impossíveis, tu chegas, aproximas-te

Das chamas ainda frias, o teu corpo parece outro coberto de roupa,

Ainda te amarei, em sonhos talvez, de outra forma, vazio e ódio,

O ódio sempre mais fácil quando as mãos vazias, ou alguém dentro

De um corpo que não pertence e foi tão nosso, o escano de madeira sabe,

Fode-me, fode-me, diziam os teus lábios de puta inocente,

E eu ia tão fundo que encontrei amor, ou sei lá o que foi, hoje, não sei,

Hoje que os lábios vazios e roxos, cansaço, um cemitério sem ossos,

Apenas ausências, noites incontáveis sem sonhos, tardes em sofás sem ilusões,

Apenas recordações pálidas, cada vez mais o nevoeiro, a velar as formas,

Lembro-me que as tuas areolas do tamanho da minha fome inteira,

Rosadas como imaginava a luxuria, mas aos poucos até a tua fome do meu esperma

Outra, dizias, que no início normal, e depois menos fome, não pedias,

Vem-te na minha boca, se calhar a tua boca cheia de futuros estranhos,

Que só por delicadeza, não aceitavas na tua cona imaculada,

Então engolias, amigavelmente, a troca de ilusões que eu já não

Consegui fingir dar, foi cedo, a fogueira, tudo, tarde, como a despedida.

 

Turku

 

28.10.2020

 

João Bosco da Silva

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

 

“Ask the Dust”

 

Foi tudo como um sonho de madrugada, breve como um último beijo,

A humidade dos pinheiros em Novembro, os lábios um sorriso curto,

A lua uma unha envergonhada na bruma, como o segredo de dois amantes,

Que lado a lado vivem as vidas que escolheram mostrar,

Foi tudo leve como as manchas da relva na ganga de umas calças pequenas,

Uma rã que cai no tanque, ou uma maçã que desiste de amadurecer,

Tudo fica longe, os anos ditam responsabilidades que não se aceitam,

Tantos, quando só uns dez ou quinze valeram realmente a vida,

O resto é acordar, dia após dia e fazer de conta que o amanhecer

Trará algo de novo às papilas saturadas pela cinza e pelo pó.

 

Turku

 

15.10.2020

 

João Bosco da Silva

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Sauna 

 

Em ti, até aos colhões, amor, tu pedes-me que te mije dentro 

E então acredito mesmo que seja amor, não é fácil manter o equilíbrio 

Que permita libertar a urina e manter o tesão em standby, 

Pronto para mergulhar no próprio mijo, chafurdar nele, 

Até começar a esguichar para todo o lado, estou tão cheia, 

Aguenta, não deixes sair, tão quente, tanto, dizes-me, 

É mesmo amor, deitas a cara sobre a madeira quente da sauna, 

Deixas-te vir enquanto começas a ceder e vertes-me em jactos, 

Aumento o ritmo, a nossa pele dourada na luz ténue das velas, 

Quero tudo na minha boca, dizes-me quando sentes 

Que me aproximo da ejaculação, voltas-te ávida 

E sorves o visco do meu orgasmo, depois beijas-me e desligas a sauna. 

 

11.10.2020 

 

Turku 

 

João Bosco da Silva

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

 

Clamídia

 

A vingança é filha da honra, um alívio cuspir na cara

Que acendeu a nossa com a mão, não há corte maior,

Um jogo da sardinha com as palmas a arder e um dente

A abanar, o avô ainda imortal a sorrir com os dentes

De vinho, a tua cona ainda cremosa por outro caralho

E na minha gaita ainda o arrependimento

Da colega de trabalho, o alívio de uma mão vazia,

Os dentes cerrados, no táxi de regresso, naquele

Jantar de ano novo, espero que a azitromicina

Te tenha caído bem, a ti também e a ti que nunca soube

Quem, que logo agora que pensava num filho,

Tenho que esperar pelo que diz o mijo no copo.

 

09.10.2020

 

Turku

 

João Bosco da Silva