domingo, 2 de novembro de 2014

Análise

O sujeito poético usa, neste caso concreto, uma vasto leque de imagens que, aliadas às aliterações, tentam transcrever em verso, num ritmo alucinado, o seu estado de espírito, ou desconforto mental, recorrendo ainda a outras figuras de estilo, se bem que poucas e ordinárias, devendo-se isto à crise da época e à condição sociocultural do próprio sujeito, como hipérboles em contraste com alguns eufemismos, poupando assim nas antíteses, usando simbologia da sua mitologia pessoal, especialmente da infância, disfarçada de metáforas, é de destacar ainda o recurso a uma poupança na pontuação pelo uso exclusivo de vírgulas de forma a impor um ritmo quase asfixiante, ilustrando bem o estado mental no momento da criação poética, sacrifica então a clareza no discurso, de modo a manter-se fiel à tradução da emoção em palavras, existe um desprezo pelo leitor, e os temas abordados, pela sua extrema natureza confessional e pitoresca, podem colocá-lo perante uma composição surrealista, este desprezo é mais notado comparativamente à dedicação mostrada pela criação anti-poética, está bem patente a consciência de que mais de setenta por cento do universo poderá ser matéria escura, uma lobotomia seria uma alternativa para o impulso, quase necessidade vital, que o sujeito tem em se tornar poético, não é para se mostrar, nem para lhe beijarem o cu, se bem que um broche, será por ele, sempre bem recebido, não é para lhe baixarem as calças em submissão contemplativa, esperando portas abertas, sujeita-se à sujeição poética, simplesmente porque come demasiada merda que a vida lhe atira aos sentidos e o estômago não aguenta tudo, tal como o cérebro quando se dorme, digere, fermenta, destila, absorve e excreta, o sujeito poético, para terminar, está claramente, munindo-se de um par de paradoxos, a cagar-se.

Turku

01.11.2014


João Bosco da Silva
Michael Jackson

Tinhas uns quatro ou cinco anos,
Em frente à televisão,
Punha a mão na braguilha,
Apertava e gritava, AMBÉ,
Contudo, a minha mãe repreendia-me,
Não faças isso que é feio, é porco,
Também devia ser pecado,
Depois de ter enfiado uma boneca
Nas cuecas e de ter apanhado,
És um porco,
Comecei a perceber que
O inferno devia ser por aquela zona,
AMBÉ e agora o Ambé está morto,
Sempre que o ouço lembro-me
Da inocência e das horas em transe
A apanhar anéis dourados
E cair em picos, buracos sem fundo,
Correndo dentro de água
Antes da contagem chegar
A zero na última vida,
O Ambé também lá apesar
De só nomes japoneses,
Agora só visito a IceCap Zone
Por nostalgia, mas continuo a não ver
Como o Ambé era pecado e
Amén não, mistério da fé,
Que se perdeu com o encolher da roupa.

Turku

31.10.2014


João Bosco da Silva
Amadurecimento Branco

Miúda, salva-me do tempo,
Digo-lhe sem mover os lábios,
A colheita de cabelos brancos
Tem-me surpreendido e
Parece que cada vez mais
Me torno transparente,
Enquanto o silêncio me
Rodeia, cada vez mais se
Torna difícil ouvir-me dentro,
Achas-me demasiado velho,
Pergunto à minha fotografia,
Nesse tempo ainda julgávamos
Ser capazes de tudo,
O que tens a perder agora,
Respondo-me, na verdade
Não sei, mas a vida tornou-se
Demasiado fina e dez anos
Agora são uma vida,
Miúda, tu que me lês,
Agora que me tornei num
Animal dócil e escravo
Da memória, traz-me
De volta, podes não saber,
Mas além do pós acumulado,
Se tiveres vontade de me
Soprares os olhos, verás,
Que ainda arde por dentro
A fome que alimenta sonhos,
Nem peço a tua língua
Despertando a minha alma
No meu escroto, mas toca-te
Quando o eco do que fui
Te entrar dentro, até
Julgares que são os teus
Pensamentos a nascer, acorda-me
Deste pesadelo de acumular anos.

Turku

30.10.2014


João Bosco da Silva