quarta-feira, 18 de março de 2020

Oku no Hosomichi 

Recebi um livro de Bashō que não me lembro de ter encomendado, 
Não é sequer um livro de haikus, é um diário de viagem, 
Não sei quem o enviou, provavelmente alguém que já me esqueceu 
E no entanto, julga conhecer-me, li a versão em português, 
Numa das últimas visitas a Portugal, terá sido alguém com lugares comuns, 
Mas distantes, como as ilusões que partilhamos, as mentiras em que escolhemos acreditar 
E as verdades que não quisemos ver, deve ter sido alguém que me teve 
Como ninguém e mesmo assim me deixou secar na certeza de um aperto estrangulador, 
De Bashō, prefiro a poesia, em cada haiku a eternidade na simplicidade, 
Um beijo que se toma sempre fresco a cada nova leitura, um olhar que não se apaga, 
Mesmo assim, fiquei feliz com o livro, como quando se encontra uma carta 
Do dia de São Valentim, entre os cadernos de escola, uma carta ridícula e inocente, 
Agora inócua, como todos os amores que se consumiram até à cinza, 
Contudo seguro o livro com tristeza, nunca o irei ler, há viagens irrepetíveis e ainda bem. 

São Paulo 

12.03.2020 

João Bosco da Silva 
Insónia e Carro da Fruta 

Às nove da manhã o carro da fruta anuncia nomes estranhos a cinco reais, 
Mal consigo imaginar as formas, nem tento adivinhar o sabor, 
A boca seca da cachaça e a lua cheia não me permitem sequer o gosto daquelas palavras, 
Dormi mal, às quatro da manhã o vizinho tossia e tranquei a porta do quarto 
Depois de dar uma vista de olhos ao portão da rua, sentei-me na sanita uma hora 
Com o Bukowski ao colo, o mundo parece acabar todos os dias 
E agora à uma da tarde os grilos parecem ser a única eternidade possível. 

São Paulo 

12.03.2020 

João Bosco da Silva