terça-feira, 30 de março de 2021

 

Trilhas de Condensação

 

O Sol agora demora-se quase até à noite,

No horizonte os cirros confundem-se com as viagens

Que nunca farei, espero as andorinhas,

A promessa das primeiras cerejas que não provarei,

A pele que em breve se tornará dourada como o desejo,

Abro a janela para deixar voar o silêncio

Do quarto vazio, haverá sempre vida onde não estou.

 

30.03.2021

 

Turku

 

João Bosco da Silva

terça-feira, 23 de março de 2021

Escitalopram

 

Continuam-se a fazer listas negras, colecionar esquecimentos furtivos

Na facilidade aparente de um novo amanhecer, somos todos carne para canhão,

Nada levaremos da vida e pouco do que deixarmos, ficará a ecoar,

Capricho inconsciente das engrenagens cósmicas, cada mundo além órbitas,

Nada mais verdadeiro que o cheiro da lavanda há momentos esmagada,

Nos dedos, os mesmos que encontram a veia, empurram o êmbolo

E trazem o susto de volta, um suspiro longe da luz, os mesmos

Que na suculenta carne sibilante, acendem gemidos e promessas fugazes,

Tornados num número redondo, num silêncio que engolirá todos os ecos.

 

23.03.2021

 

Turku

 

João Bosco da Silva


domingo, 21 de março de 2021

 

Treva Dourada

 

De que serve esta luz, este sol justo que aquece a terra

Onde jaz o teu futuro, esta promessa dourada de eternidade,

Quando nem todos os olhos serão testemunha,

Em breve, até deixará de ser demasiado tarde,

A geada abraçará uma vez mais o orvalho,

Nos sonhos de quem ainda acorda o vazio de um novo dia.

 

21.03.2021

 

Turku

 

João Bosco da Silva

Primavera Nunca Mais

 

Este Sol soprado por um vento resignado,

Começa a primavera à saída duma febre salvadora,

O nosso mundo não regressará nunca, venham as primaveras

Que vierem, cada novo rebento uma revolta

Contra a morte, as folhas que agora fertilizam

A mesma terra que pisamos juntos, uma cor impossível,

As árvores nuas atravessadas pelo vento ainda gelado,

Esperam o que a minha alma perdeu se a tivesse tido.

 

21.03.2021

 

Turku

 

João Bosco da Silva


sexta-feira, 19 de março de 2021

 


Vacinas e Dia do Pai

 

Não me lembro ao certo que vacina foi, era verão,

A tinta lascava das paredes do centro de saúde,

Deve ter sido uma das da hepatite B, era noventa e quatro ou cinco,

Tinha ido sozinho, já era um homem grande,

Ao sair do centro o Sol começou a ficar demasiado branco,

A meu pai passa ao mesmo tempo com a carrinha L200,

O som daquele motor aconchega-me até nos sonhos,

Salto para o banco de trás, antes de tudo se apagar,

Naquele verão o meu pequeno braço pareceu

Uma fonte de pus e infeção, mas a vacina era segura,

Como tudo era seguro em mil novecentos e noventa,

Hoje acordei cedo, passado meia-hora estava a levar

A vacina contra o medo do mundo, regresso a casa,

Deito-me porque ainda tinha sono, acordo tarde,

Como sempre, calmamente preparo o pequeno-almoço,

É o dia do pai, por volta das quatro cancelam a mesma vacina,

Até ver, ainda não precisei da L200 para ser salvo.

 

19.03.2021

 

Turku

 

João Bosco da Silva

segunda-feira, 15 de março de 2021

 

Novo Outono

 

A neve descongela, mas a primavera

Ainda não chega, regressa um outono

Meio adormecido, as folhas geladas

Apodrecem finalmente, a merda dos cães

Antecede os primeiros rebentos,

As distâncias suspensas novamente

Num cinzento com tons de infinito.

 

15.03.2021

 

Turku

 

João Bosco da Silva

segunda-feira, 8 de março de 2021

 

Esperando o Café

 

Enquanto espero que a água suba e o café desça,

Releio “Lament for Bukowski”, já não é manhã,

A noite passei-a a dialogar com uma encefalopatia hepática

E uma parede, ambas queriam comprar cigarros

Às três da manhã, numa cidade fechada,

Bens essenciais, subitamente a água sobe e quando cai

No nível superior já é café, o Bukowski continua

No seu caixão “dead as hell”, também o Al Purdy,

Não me lembro do que era antes de cair,

Talvez nunca tenha sido puro, a vida também isto,

Um lamento crescente, um poema que nasce de outra dor.

 

08.03.2021

 

Turku

 

João Bosco da Silva

 

Negrilho  

 

Quando o negrilho estava vivo, éramos jovens, 

Aquela sombra era eterna, junho era verde e fresco, 

Havia esperança nas manhãs, a vida parecia um longo início, 

Como te posso explicar agora na canícula 

Que ali houve uma sombra, uma companhia silenciosa, 

Mas tão presente, um negrilho que entretanto secou, 

Como a juventude e o futuro, e todos os amores. 

 

Turku 

 

07.03.2021 

 

João Bosco da Silva

sábado, 6 de março de 2021

 

Tragédia Grega

 

Queria foder-te ao som da Venus in Furs, acabei por me vir

Com os Men Without Hats, apertado nos teus lábios,

Nem um abraço, queixaste-te mais tarde, na verdade tinha

Mesmo o frigorífico vazio, ou quase, e tinha que levar

Para casa a justificação de uns sacos com ovos, sumos,

Essas coisas que nos fazem gente, mas começa-se

Com Velvet Underground e acaba-se a ser engolido

Na segurança estéril de uma boca quente,

Como diria a Julianna Gianni, “isso significa alguma coisa”,

Se calhar, já este poema não tem qualquer significado.

 

Turku

 

06.03.2021

 

João Bosco da Silva