terça-feira, 6 de outubro de 2020

 


A Crise

 

demais

muito pouco

insuficiente

 

gordo demais

magro demais

ou ninguém

 

riso ou

lágrimas

ou imaculada

negligência.

 

os que odeiam

os que amam

 

exércitos correndo pelas ruas de sangue

empunhando garrafas de vinho

esfaqueando e fodendo virgens

 

ou um velho num quarto barato

com uma fotografia da Marilyn Monroe

 

muitos velhos em quartos baratos sem

qualquer fotografia

 

várias velhas esfregando rosários

quando preferiam estar a esfregar caralhos

 

há uma solidão neste mundo tão grande

que a podes ver nos movimentos lentos do

ponteiro do relógio

 

há uma solidão neste mundo tão grande

que a podes ver piscar nos sinais néon

em Vegas, em Baltimore, em Munique

 

há pessoas tão cansadas

tão esmagadas

tão mutiladas pelo amor ou falta

dele

que comprar uma lata de atum em promoção

num supermercado

é o seu momento mais sublime

a sua maior victória

 

não precisamos de novos governos

novas revoluções

não precisamos de novos homens

novas mulheres

não precisamos de novas formas

troca de esposas

camas de água

cocaína

colombiana de qualidade

canalizações

vibradores

preservativos estriados

relógios com data

 

as pessoas não são boas umas para as outras

directamente.

raios para o Marx

o pecado não é a totalidade de certos sistemas.

raios para a cristandade

o pecado não é o assassínio de um Deus.

 

simplesmente as pessoas não são boas umas para as outras.

 

temos medo

achamos que o ódio é força

achamos que Nova Iorque é a maior cidade

da América.

 

o que precisamos é de menos brilho

o que precisamos é de menos instrução

 

o que precisamos é de menos poetas

o que precisamos é de menos Bukowskies

o que precisamos é de menos Billy Grahams

 

o que precisamos é de mais

cerveja

datilógrafos

mais tentilhões

mais putas de olhos verdes que não te quebrem o coração

como uma vitamina

 

não pensamos no terror de uma pessoa

sofrendo num lugar

 

sozinhos

intocados

ignorados

regando uma planta

sem um telefone que jamais

tocará

porque não existe.

 

mais os que odeiam que os que amam.

 

fatias de desgraça como tafetá

 

as pessoas não são boas umas para as outras

as pessoas não são boas umas para as outras

as pessoas não são boas umas para as outras

 

e as contas balançam e as nuvens ocultam

e os cães mijam sobre as rosas

e os assassinos decapitam as crianças como quem dá uma dentada

num cone de gelado

e o oceano vai e vem

vai e vem

sob a direção de uma lua insensível

 

e as pessoas não são boas umas para as outras.

 

Charles Bukowski, Second Coming. Vol. 5 No. 1 - 1977

Tradução: João Bosco da Silva

 

 


O Último Sol de Setembro - Haikus

 

Sabes-me

a longa despedida

Sol de Setembro.

 

Chegar ao fim

sem dar um passo

também é viver?

 

Não deixa de ser

amargo

o último Sol.

 

Calças brancas

ignorantes

do meu desejo fossilizado.

 

Sob a macieira

apodrecem maçãs –

cheira a Setembro.

 

Dentes escondidos

como as folhas

de Outono.

 

As folhas caem

os grilos cantam

ainda o Sol.

 

Arrefece o meu corpo

com o dia –

fim de tarde outonal.

 

Atrás de mim

sobre o musgo húmido

cai a folha amarela.

 

É doce ao Sol

o cheiro pútrido

do Outono.

 

Brilham ainda na folha

as gotas de orvalho –

fim de tarde.

 

Que doce arrefecer

entre

folhas caídas.

 

A rapariga na bicicleta

regressa da escola –

também o verão acaba.

 

Ao lado do poema

cagou uma mosca –

tudo está certo.[1]

 

Com Buson ao colo

que prazer

o último Sol de Setembro.

 

Pudesse eu guardar

este Sol

para as longas noites geladas.

 

Torna-se mais belo

o verde

tocado pelo Sol.

 

Muitos passos ouvi

e nenhum

na minha direção.

 

No prado verde

só os grilos

me saudaram.

 

Uma nuvem insignificante

apaga o dia

indefinidamente.

 

Contrariando o frio

anunciado

aquelas árvores vermelhas.

 

O teu desejo

como a árvore

hahakigi.

 

Nem um buraco

escavado nos prados –

esqueceram as formigas-de-asas.

 

Permanecem em silêncio

as pedras

depois de pisadas.

 

Quero aqui guardar

o último sol

de Setembro.

 

Setembro 2020, Turku

 

João Bosco da Silva



[1] Inspirado no poema de Buson: “Um gato mordisca/a flor de uma cabaça - /tudo está certo”.

 

A Queda das Folhas

 

Na piscina fria apenas a companhia da sombra e das folhas que já apodrecem,

Chupou-se o Verão como quem respira por uma palhinha os dias quentes

E distantes, que correm pelos dedos como areia fina de uma ampulheta partida,

Nos dentes o sabor ácido das maçãs que cresciam no cemitério de carros apreendidos

Na alfandega da Guarda-fiscal, as vespas esperam a doçura da fruta que mancha

Os campos de ténis esquecidos, as memórias são emigrantes que há muito não regressam,

Os sonhos são estranhos que um dia nos entregaram o corpo, somos estações

De comboio abandonadas, onde ainda cheira à madeira escurecida pelo óleo e despedidas,

Que acordar vazio nos trará a almofada babada por todas as ausências,

Em que distâncias acordaremos, amantes de mãos vazias, enquanto as folhas caem.

 

06.10.2020

 

Turku

 

João Bosco da Silva