sexta-feira, 29 de março de 2019

Andar Aos Pássaros 

Lembro-me bem do sabor do chumbo entre os dentes, 
Do cheiro a musgo e infância nos dedos cada vez menos meus, 
A arma de pressão tinha vindo da Espanha, para matares os pardais, 
Disse o meu pai, eu preferia atirar às molas da roupa na corda do estendal, 
O pequeno pássaro na mira, nervoso, vivo, um pedaço de céu castanho, 
No meu dedo o poder de o transformar num número, 
O meu coração como o punho pequeno, tão vivo quanto ele, 
O pedaço de chumbo que há pouco entre os meus dentes 
Agora entrando no corpo pequeno do animal, apagando-o, 
O coração acelerando os passos de encontro à victória, 
Que afinal, um pedaço de céu destruído, pequenino, 
Uma agonia em miniatura do tamanho de todas as agonias, 
Eu mais pequeno que o chumbo, que o corpo onde agora o chumbo, 
Um orgulho envergonhado, aquele bicho ainda quente, 
Nas mãos cada vez menos minhas mãos, agora mais metal 
Que o aconchegante cheiro a musgo e infância, 
Mais um, como mais tarde mais uma, quase a mesma vergonha, 
O desencanto de acertar, de entrar, porque é o que esperam de ti. 

Turku 

29.03.2019 

João Bosco da Silva 

domingo, 10 de março de 2019

Deixa-te Ficar Antes Do Esquecimento 

Dizem que fugiu para uma aldeia do sul de França com uma mulher casada, 
Tinha-a deixado há meia vida atrás, como aos chás do Em Busca do Tempo Perdido, 
Agora passa as manhãs à espera do pão quente enquanto arrefece na cama 
A dor de cabeça do vinho da noite anterior, passa as tardes a contar os barcos 
Que regressam como as memórias de tudo o que deixou por aquele horizonte, 
Com o mesmo livro ao colo, à espera do regresso daquele vestido florido, 
Pedalando o brilho da maresia, não é infeliz e isso basta-lhe, 
O que ficou por fazer noutros mundos, noutras vidas, não era para o que se tornou, 
Dizem que não faz mais nada a não ser plantar papéis gatafunhados debaixo 
Da macieira no jardim que às vezes cuida, às vezes a sorte cuida, 
Têm um gato tão inútil quanto ele, tão sábio quanto ela, 
Dizem que a coisa não irá durar como sempre, mas ele continua a contar as estrelas, 
Com ela, embalados por mil grilos, o mar que devolve os sonhos esquecidos, 
Aprenderam a abraçar-se com silêncio, também há amor quando se espera. 

10.03.2019 

Turku 

João Bosco da Silva 

quinta-feira, 7 de março de 2019

* 

Amarelo agora 
o que dourado -  
Outono. 

Como um marcador 
a um livro 
assim nos conhecem. 

Cansaram-se 
as folhas - 
na carne fome ainda. 

Que sabe a carne 
da luz 
que deseja. 

Apodrecem esmeraldas 
a nu fica 
o que permanece. 

Um passo sem chegar 
já é sair  
do sítio. 

Encher as páginas 
de vazio - 
impossível? 

Quantos eus perdi 
por ter sido 
quem fui. 

Ler Bolaño lembra-me 
da vida que perdi 
por esta. 

Que pretende o vento 
contra o vazio -  
Novembro. 

O vizinho fuma 
mais um cigarro -  
cai a última folha. 

Cinzento e triste 
o dançar nu 
das árvores. 

Todo o amor 
tem a natureza 
do vinho. 

Não há beijo 
que não 
se apague. 

Como tudo eterno 
uma frágil 
bolha de sabão. 

Basta um tropeço 
para se cair 
no Inverno. 

Árvores de Novembro 
sempre estranhos 
desesperos. 

Nada pior 
que acordar 
quando acordado. 

Cheira à cor do incêndio 
na manhã seguinte 
o teu olhar. 

Na Ânfora 
a mortalha apodrecida 
dos meus sonhos. 

Onde ficou a luz 
do verão -  
janelas molhadas. 

Mais rápido seca 
a roupa 
que os olhos. 

Ninguém parte 
na verdade -  
tudo deixa de ser. 

As borboletas 
ignoradas no verão - 
folhas que caem. 

Sem uvas nos pés 
o ano acaba 
em Agosto. 

Nasce no Verão 
oque agora 
arrefece. 

Não queiras acender 
o fósforo 
queimado. 

Escurece o dia 
frio 
fim da infância. 

Cheira a Maio 
em Setembro 
nos teus braços. 

Como um figo aberto 
a doçura 
dos teus lábios. 

Cabe um verão 
em três 
canções. 

Nenhuma cama 
pequena 
quando amor. 

Nunca tocarei 
a ilusão 
que me resta. 

Turku, Setembro-Dezembro 2018 

João Bosco da Silva