Aquele Outro Porto
O Porto tornou-se numa recordação coberta de bruma,
Numa manhã cinzenta de Janeiro, ecos diluídos pelo tempo,
Aquele preservativo usado ao virar da esquina,
A colega que aos poucos se solidificou numa personagem
Tão real como a de qualquer filme daquela época,
Rua do Almada acima pela mão do namorado cabeludo,
Segurando uma garrafa de vinho, eu a fazer-me tão invisível
Quanto julgava ser, mais uma loja de ferragens ou segunda
mão,
O drogado à entrada do Pingo Doce, à hora do almoço,
Eu de pizza no saco e moeda pronta no bolso para pagar
portagem
E um obrigado doloroso, um quase amigo, aquela Ribeira
Tão imensa à beira de todas as decadências possíveis,
Tão sombria em olhos inocentes ao pó da história,
Aquele Porto do tamanho da maior cidade do mundo,
Não fosse o refúgio dos amigos da terra, que traziam os dias
quentes
E as últimas gotas de felicidade, numa cidade, onde julgava
Ter encontrado o seu fim absoluto, teria asfixiado o verde restante,
Aquele Porto eco, neste Porto que por vezes revisito
Com certa alegria, eu tão estrangeiro como ele e quem nele
Agora vive emprestado, agora como uma velha amante que não
se toca
Há anos porque a nossa idade domou o desejo ou o calcificou
Numa estátua inerte e tosca, de quem olhou para trás com saudades
do pecado.
10/01/2024
Zurique-Helsínquia
João Bosco da Silva