quinta-feira, 13 de agosto de 2020


Ezequiel

Tu, que há muito tens sofrido a violência do tempo no corpo inanimado,
Continuas a visitar-me em cada museu que visito, tu, cuja terra acima de ti
Não pode ser pisada sem constrangimento dos vivos, ainda hoje te vi, aqui,
Longe, quase no início dos tempos geológicos, quando há demasiado tempo
O teu próprio acabou, naquela obra de Gilbert & George, cristais de uma urina
Longínqua, como as quartas-feiras à tarde, em que baixavas a muralha de professor
E te tornavas num mestre, num amigo e me revelavas, a mim, um adolescente estúpido,
Afogado em dúvidas e exsudando certezas vazias, um mundo estranho e livre,
Hoje aqui, nesta cidade, vejo-te maior que qualquer tempo, não coubeste no mesquinho
Mundo a que chamamos nossa terra, quantas vezes foste troçado,
Ou tentaram humilhar-te, mas só se humilha quem engole, o artista cospe,
Tu, que habitas o mundo inteiro agora, sempre, meu querido professor.

Reiquiavique

11.08.2020

João Bosco da Silva


Arrefecimento

Quantos verões passaram, a quantos corpos alheios nos entregamos,
Sabíamos nós, que aquele restolho o último em que o sol de Agosto
Ainda nosso, hoje lembro-me de ti com pena, como sempre,
Surges-me por acaso, como uma traça batendo no vidro à procura de calor,
Não tivesse o amor ou aquilo em que acreditávamos que fosse,
Fermentado como um tubarão, mas o copo já vazio há muito
E a sede é um purgatório interminável, sempre com vontade de mais
Um corpo onde sujar a alma, mas até o teu sorriso era triste ao sol do meu lado.

Reynir

08.08.2020

João Bosco da Silva




Homem do Saco

Há sempre alguém, em todas as cidades, que vai de caixote em caixote,
Recolhendo garrafas e latas vazias, como aquele homem curvado
Em Reiquiavique, em frente à oponente catedral, onde turistas,
Olhando em segunda mão, captam com as suas objectivas uma imagem
Que ficará esquecida em cartões de memória, também eu,
Vou recolhendo para a página em branco, palavras vazias, tentando resgatar
Algum valor, ou pelo menos criar a ilusão, que no gesto pobre de recolher
O lixo do meu vocabulário, para o papel, tenha ganho o dia e a vida.

Reynir

08.08.2020

João Bosco da Silva


Caminhos

Todos os caminhos nos levam ao fim, contudo temos que continuar,
Por este ou aquele caminho, dando voltas, muitas vezes parecendo
Que não saímos do mesmo lugar, mas quando olhamos o espelho,
Afinal, longe, cada percurso vale sempre o que vale, no final,
Nem as pernas cansadas incomodarão, só a preguiça, os passos
Que por covardia ficaram por se dar, roerão os pés que já não poderão
Regressar àquele cruzamento que ficou noutros verões,
Vai, vai por ali e por além, se não fores, ninguém te levará
E a vida não espera, o fim chega sempre demasiado cedo.

Reynir

08.08.2020

João Bosco da Silva




Vinho que Desce Como a Chuva Cai

Que interessa incomodar-me com a chuva, já vai no ar
E cair-me-á sempre em cima, as meias molham-se,
Secarão, as ovelhas além naquele verde monte,
Sabem viver a vida melhor, pastam como num dia de sol,
A chuva continuará a cair até parar, tudo parará um momento,
Para recomeçar noutro, à noite espera-me um banho quente,
Um copo de vinho vindo de longe e as meias, quando saírem
Dos meus pés enrugados, já quase secas, então a mesma chuva,
Saberá bem da janela, de onde vejo as ovelhas a pastar
Como num dia de sol e algo se ilumina por dentro,
Seguindo o caminho do vinho, que desce, como a chuva cai.

Reynir

06.08.2020


João Bosco da Silva


SAGA – Haikus Islandeses

Em direção ao céu
os degraus
imitando um vulcão.

Contra o horizonte branco
dançam timidamente
as flores coloridas.

Envolvendo dentes-de-leão
uma renda –
longe a minha mãe.

Nesses mesmos seios
a saliva
de outro.

Sobre as ondas solidificadas
cresce o musgo –
dragões adormecidos.

“Não passarás”
disse o mar –
tornou-se ilha.

Agulhas caindo
numa lata de bolachas
vazia.

Alma lavada
com as entranhas
da terra.

Gotas caindo
na lagoa quente –
música de felicidade.

De barriga vazia
cheio de cansaço
e felicidade.

Mergulhando sob o azul
alguém toca piano
no meu esqueleto.

O musgo
cobre de suavidade
a violência arrefecida.

Ouço a guitarra
de Mike Oldfield –
chuva na Islândia.

Como estrelas cadentes
as gotas de chuva
percorrendo a janela.

Com os anos
tornei-me capaz
de ver apenas.

No azul quente
dos teus olhos
aqueço a alma.

No pêlo molhado
da égua
a marca da sela.

O poeta era leve
Saga
nem se cansou.

No pêlo do cavalo
Cai a chuva miúda –
verão islandês.

O que deus
deixou por acabar
o mais belo.

Nas arestas verdes
pastam
as ovelhas.

Caindo do infinito
mergulha a água
na terra.

Ainda não tiveram
tempo os riachos
de esculpir a terra.

Sobre verdes campos
os fardos
já esperam o Inverno.

Alguém regressa a casa
chove
amanhã amanhecerá.

É a chuva que cai
ou é apenas o mundo
a ser?

Pés molhados
copo de Brennivín
espera.

Depois de tantos anos
que pressa levam
as águas dos glaciares?

Contra os vidros
a chuva
acaricia-me o cansaço.

Ante que o verde branco
as ovelhas continuam
a pastar.

Não ouvir nada
além do vento –
que sorte a minha!

Em frente à cascata
três cavalos
contemplam a erva.

Do alto da montanha
vejo o mar
fecho os olhos vejo tudo.

Em cima da fraga
escutar atentamente
o silêncio.

Atirar calhaus
monte abaixo
e ver onde param.

Que fúrias divinas
terão esculpido
tais montanhas?

A pequena igreja
sobre a obra
de deuses antigos.

O templo maior é aquele
onde a chuva cai
livremente.

Depois de uma longa caminhada
os três cavalos
continuam no mesmo lugar.

Gotas de água
numa teia
esperam o Sol.

Abri o frasco
de tubarão fermentado
logo me arrependi.

Lá fora o vento
canta algo
que só compreendo dentro.

As luzes dos carros
passam
levando as vidas.

Inspirar fundo
o azul primitivo
da noite nórdica.

As nuvens afastam-se
e o verde
ilumina-se.

Milhares de anos
azul cortando
o verde.

Quase chegaram
a terra
os trolls de Reynisfjara.

Depois de tecer
a teia
a aranha espera.

A traça não compreende
a natureza
do vidro.

Vinho italiano
trutas islandesas
saudade portuguesa.

Até no paraíso o português
terá saudades
do seu buraco.

Nos montes o verde
escurece
na garrafa aclara.

Que pedem as vacas
que mugem
na escuridão?

À entrada da porta
o gato cinzento
despede-se dos viajantes.

O açúcar na chávena
arrefece –
chove no porto.

Más notícias
vêm de longe –
chove no porto.

Inalo o fumo
A chuva cai
Os carros passam.

Escrevo
porque os mortos
me visitam.

Islândia, Agosto de 2020

João Bosco da Silva