quarta-feira, 28 de outubro de 2020

 

Colegas de Trabalho

 

Tanto amor pelo plástico colorido, pela carne borbulhante como sangue aceso,

O helicóptero leva mais um corpo meio apagado ao cansaço dos hospitais centrais,

Alguém tenta dormir sobre uma almofada babada, depois de duas miligramas

De adrenalina e cento e cinquenta joules até um pulso, um ritmo acendido

Num corpo sem gás, amanhã alguém decidirá que não vale a pena,

Conseguimos adiar mais uma morte, foi apenas isso, como acordar mais um dia,

Conseguimos adiar mais uma morte, seja num corpo sem morte anunciada,

Ou num corpo cujo mistério espera o acidente do acaso, a carne borbulhante,

As nádegas palpitantes nas pupilas mal iluminadas, no sonho, a vontade

De um abraço estrangulador, aquele cabelo loiro, espesso como o esperma

Prometido num olhar, alguém diz que tem o terceiro filho a caminho,

Nunca ninguém acusou que o que engoliu lhe tenha impedido a próxima menstruação,

Aquele cabelo espesso como a vontade impossível, quinze anos mais jovem,

Mas nas papilas a vontade clara da decadência do abuso consentido,

Será que me sonhas agora, como eu sonhei aquela miúda das limpezas,

Naquele verão ainda longe do outono, enquanto te ofereço num copo minúsculo

Um líquido branco, que te cura da azia causada pela mixórdia de leite azedo

Que engoliste do teu jovem marido, e aceitas, dizendo que tanto, tragas tudo.

 

 

Turku

 

29.10.2020

 

João Bosco da Silva

Vazio em Copo Sujo

 

Estou demasiado cansado, podia ir dormir, mas estou demasiado cansado,

Vou em vez, abrir mais uma garrafa de vinho, chupar o passado

Da medula óssea, passar a língua nos dentes e fingir, que de olhos na parede,

Estou outra vez lá, onde fui, com as unhas cravadas no musgo fresco,

As calças de ganga rasgadas pelo granito das fragas, chumbos quatro e meio

Entre os dentes, com os pardais na mira, aquelas pernas brancas das procissões

Do verão, o cheiro do único quiosque da terra a jornal fresco e banda-desenhada,

O amor num toque monotónico quando o saldo quase zero,

Contar os caracteres, esperando que o amor não demasiado longo,

Em vez de, uma garrafa de Bordeux, mais uma garrafa de Bordeux,

Antes era apenas uma cor na boca da minha mãe, cor de vinho quase,

Hoje estou demasiado cansado, até para dormir, porque para dormir

É preciso força para estar vivo e há dias do tamanho de anos,

Que até o sono me dá vontade de uma cama fria, um corpo ausente,

Mais um ridículo universo apagado, um copo vazio, lábios lívidos esquecidos.

 

 

Turku

 

28.10.2020

 

João Bosco da Silva


 

Auto dos Danados

 

 

Acordar cedo para acender o lume, dentro o vazio, o resto crepita lá fora,

Uma geada épica como a fome de batatas, a roupa estendida, bacalhaus

Que alguém esqueceu, como amores que aos poucos se esquecem,

Não fosse a insónia e a falta de pinhas para acender outros lumes,

Os vizinhos apertam as cafeteiras e aproximam as garrafas de aguardente

Antes de pegarem nas enxadas para cavarem a terra ainda dura,

Os dedos ainda azedos, cheira tudo ainda a cu lavado, amor enquanto dura,

As macieiras imaginam doçuras ainda impossíveis, tu chegas, aproximas-te

Das chamas ainda frias, o teu corpo parece outro coberto de roupa,

Ainda te amarei, em sonhos talvez, de outra forma, vazio e ódio,

O ódio sempre mais fácil quando as mãos vazias, ou alguém dentro

De um corpo que não pertence e foi tão nosso, o escano de madeira sabe,

Fode-me, fode-me, diziam os teus lábios de puta inocente,

E eu ia tão fundo que encontrei amor, ou sei lá o que foi, hoje, não sei,

Hoje que os lábios vazios e roxos, cansaço, um cemitério sem ossos,

Apenas ausências, noites incontáveis sem sonhos, tardes em sofás sem ilusões,

Apenas recordações pálidas, cada vez mais o nevoeiro, a velar as formas,

Lembro-me que as tuas areolas do tamanho da minha fome inteira,

Rosadas como imaginava a luxuria, mas aos poucos até a tua fome do meu esperma

Outra, dizias, que no início normal, e depois menos fome, não pedias,

Vem-te na minha boca, se calhar a tua boca cheia de futuros estranhos,

Que só por delicadeza, não aceitavas na tua cona imaculada,

Então engolias, amigavelmente, a troca de ilusões que eu já não

Consegui fingir dar, foi cedo, a fogueira, tudo, tarde, como a despedida.

 

Turku

 

28.10.2020

 

João Bosco da Silva