Regresso
Trago comigo os quilómetros multiplicados pela saudade improvável de um quarto de hora,
Ou menos, que a estação não fica tão longe e já se cheira a Trindade enquanto troco o saco
Com a roupa lavada de braço, que se tornou demasiado pesado com os paralelos sujos
Das ruas timidamente iluminadas por quase candeeiros no nevoeiro desta cidade doente.
Sei que me espera a conversa de sempre e será inevitável o sorriso no chão, que pisarei logo
De seguida e não é por falta de vontade, o bolso ainda tem o dinheiro todo para a semana
Menos o que foi para o bilhete de autocarro e há fomes piores que um estômago vazio,
Num quarto escuro de uma cidade que parece que nos esmaga apesar do seu tamanho,
Olá gato, queres subir, e o sorriso logo com os pés apressados, o medo do desejo,
A moral quase tatuada a apontar-me um dedo impossível, que só nas vísceras, onde se digere
O cadáver de deus, porque está frio e elas quase nuas, tão jovens, pouco mais de vinte,
Provavelmente menos, que esta vida lhes envelhece o corpo, mas a alma já deve estar
A viver de uma pensão que uma mão de boas recordações lhe envia algumas manhãs,
Quando o sol se torna mais forte que o nevoeiro e chega, lá da foz onde acordam alguns
Drogados do sono que foi a sua vida, e tudo me parece tão distante aos dezanove anos,
Tudo me parece tão pesado, a luz cansou-se, a lareira se pudesse, trazia-a comigo
E partilhava-a com aqueles que dormem lá mais em cima, no viaduto, debaixo de papelões
E mantas sujas, a minha avó tem melhores mantas a alimentar as traças nas malas,
Mas o nosso inverno é afiado, talvez por isso não durma ninguém nas encruzilhadas
Dos caminhos de pó em direcção aos soutos do meu avô. O que farão elas neste país
Que hoje me parece o melhor que existe, apesar de Espanha não ser tão má, apesar de estar
No estrangeiro, se elas soubessem que aqui as promessas consomem a gente, arrancam
O brilho dos olhos e dão de mamar aos velhos gordos de gravatas apertadas,
Só sabem que o único leite que lhes oferecerão a beber é o que lhes dará de comer
E um envelope amanhã para o país frio onde os pais definham e a irmã tenta não
Cair na necessidade de vir conhecer os clientes da solidão, uns que vão, quase fogem,
E se fecham nos quartos pequenos, abrem o saco e levam os tupperwares ao frigorífico
Com as refeições dos próximos dois dias, aquecem o conteúdo de um e comem o silêncio
Enquanto esperam que venha alguém, de outros lados, com sacos cheios de vida,
Um fim-de-semana, um até amanhã e boa semana se não nos virmos, a música começa.
A vida continua, lá fora, nas ruas da cidade mesmo enquanto tranco a porta do quarto,
Espero que hoje não assaltem o café em baixo, já me custa a adormecer, sabendo que amanhã
Tenho que acordar, sem uma lareira acesa à espera, sem as torradas na mesa e o café com leite,
Na companhia da minha mãe, da minha irmã e da inocência dos galos que cantam um novo dia.
16.10.2011
Turku
João Bosco da Silva