domingo, 16 de outubro de 2011


Regresso



Trago comigo os quilómetros multiplicados pela saudade improvável de um quarto de hora,

Ou menos, que a estação não fica tão longe e já se cheira a Trindade enquanto troco o saco

Com a roupa lavada de braço, que se tornou demasiado pesado com os paralelos sujos

Das ruas timidamente iluminadas por quase candeeiros no nevoeiro desta cidade doente.

Sei que me espera a conversa de sempre e será inevitável o sorriso no chão, que pisarei logo

De seguida e não é por falta de vontade, o bolso ainda tem o dinheiro todo para a semana

Menos o que foi para o bilhete de autocarro e há fomes piores que um estômago vazio,

Num quarto escuro de uma cidade que parece que nos esmaga apesar do seu tamanho,

Olá gato, queres subir, e o sorriso logo com os pés apressados, o medo do desejo,

A moral quase tatuada a apontar-me um dedo impossível, que só nas vísceras, onde se digere

O cadáver de deus, porque está frio e elas quase nuas, tão jovens, pouco mais de vinte,

Provavelmente menos, que esta vida lhes envelhece o corpo, mas a alma já deve estar

A viver de uma pensão que uma mão de boas recordações lhe envia algumas manhãs,

Quando o sol se torna mais forte que o nevoeiro e chega, lá da foz onde acordam alguns

Drogados do sono que foi a sua vida, e tudo me parece tão distante aos dezanove anos,

Tudo me parece tão pesado, a luz cansou-se, a lareira se pudesse, trazia-a comigo

E partilhava-a com aqueles que dormem lá mais em cima, no viaduto, debaixo de papelões

E mantas sujas, a minha avó tem melhores mantas a alimentar as traças nas malas,

Mas o nosso inverno é afiado, talvez por isso não durma ninguém nas encruzilhadas

Dos caminhos de pó em direcção aos soutos do meu avô. O que farão elas neste país

Que hoje me parece o melhor que existe, apesar de Espanha não ser tão má, apesar de estar

No estrangeiro, se elas soubessem que aqui as promessas consomem a gente, arrancam

O brilho dos olhos e dão de mamar aos velhos gordos de gravatas apertadas,

Só sabem que o único leite que lhes oferecerão a beber é o que lhes dará de comer

E um envelope amanhã para o país frio onde os pais definham e a irmã tenta não

Cair na necessidade de vir conhecer os clientes da solidão, uns que vão, quase fogem,

E se fecham nos quartos pequenos, abrem o saco e levam os tupperwares ao frigorífico

Com as refeições dos próximos dois dias, aquecem o conteúdo de um e comem o silêncio

Enquanto esperam que venha alguém, de outros lados, com sacos cheios de vida,

Um fim-de-semana, um até amanhã e boa semana se não nos virmos, a música começa.

A vida continua, lá fora, nas ruas da cidade mesmo enquanto tranco a porta do quarto,

Espero que hoje não assaltem o café em baixo, já me custa a adormecer, sabendo que amanhã

Tenho que acordar, sem uma lareira acesa à espera, sem as torradas na mesa e o café com leite,

Na companhia da minha mãe, da minha irmã e da inocência dos galos que cantam um novo dia.



16.10.2011



Turku



João Bosco da Silva