domingo, 22 de setembro de 2019

Leoa de Madeira

De ti pouco mais tinha sobrado que aquela leoa de madeira
Que comprara em Samburo quando lá estivemos,
Na viagem entre Masai Mara e Nakuro percebi que já pouco te amava,
Tudo está acabado quando o trivial se sobrepõe à ilusão,
Pela leoa queriam a minha caneta, que acabei por dar
A uma menina desconhecida, na apresentação de um dos meus livros,
A noite anterior tinha-a passado com uma professora,
Na sua casa alugada e do que me lembro mais foi de vir-me
No tracejado de luar que as persianas lhe desenhavam nas nádegas,
Tinha uma pata colada, foi se calhar por isso que a trouxe,
Sempre tive um fraco por imperfeições, casos perdidos,
Hoje da leoa só ficou um haiku que escrevi, depois de já não estarmos juntos,
Porque um garoto que nunca conheci a deixou cair
E partiu-se de forma irremediável, assim me disseram,
Não a cheguei a ver cair, contigo foi o mesmo,
Não vi a queda e só ficou um carinho como uma leoa de madeira
Com uma perna quebrada, que também desapareceu,
Às mãos da maldade de um inocente, como o tempo.

Turku

22.09.2019

João Bosco da Silva

terça-feira, 10 de setembro de 2019

Também Pensei Em Ti No Vietname 

Deixa-te ficar sossegada na tua ausência, não faças muito barulho 
Para não afugentares a ilusão na qual te tornaste, 
O que havia de mim para te dar, acabou antes de poder abrir as mãos, 
Não sei se foi a garrafa de champanhe, se a mensagem da barba, 
Quando a invasão francesa chegou, só veio enterrar a baioneta 
No peito que já agonizava, temos sobrevivo de distância, 
Nada alimenta impossíveis como a distância, 
No entanto sinto que quase estivemos demasiado próximos, 
Não sei se, entretanto, encontraste o tal amante que precisavas, 
Ou a vontade te pedia, porque sempre precisamos de uma violência 
Na doçura, morder os lábios da vida de vez em quando, 
O Outono chega e sabes o quanto isso me custa, 
Tudo me lembra o teu cabelo, as allstar sujas e o ranger 
Do soalho sob os teus passos esfíngicos, não incomodes 
O vazio que levei anos a domar, aceitar o nada como certeza. 

Turku 

10.09.2019 

João Bosco da Silva 
Vestido Azul 

There´s things I wanna talk aboutbut I´ll just let you live” 
Lana del Rey 


Não há nada mais triste que acordar com o sabor 
Da tua silhueta recortada pelo Sol através daquele vestido azul, 
Nunca saberei se também tu, voltaste a sonhar comigo, 
As tuas mãos nas minhas, antes de qualquer poesia, 
Acordar depois de termos brincado no chão da sala da casa 
Onde nunca entraste e já pouco me encontro nas fotografias, 
Eu debaixo de ti a assegurar-te que só amigos 
E da tua boca as palavras da minha vontade, 
E se te fizesse um broche, cai uma carta pesada no chão 
E acordo, um catálogo qualquer, maldito carteiro, 
Aquele bater no chão como quando li a tua última carta, 
Só amigos, e acordo, cai-me algo que nem sabia que tinha, 
Nem vi sequer o que era, as mãos nunca me pareceram 
Tão vazias, sabendo que nunca mais os teus dedos longos 
Entre os meus, quanto dedo no cu, nenhum teu, 
Acordar sempre, até ao adormecimento último, 
Com a poesia no lugar de um amor no qual só os sonhos acreditam. 


Turku 

10.09.2019 

João Bosco da Silva 

segunda-feira, 9 de setembro de 2019



Muitas Folhas Caíram - Haikus 

Em casa dos meus pais 
não me encontro 
nos espelhos. 

Voam duas libelinhas 
apaixonadas - 
seca o exosqueleto no junco. 

Passa a água 
diluem-se as memórias -  
mosca pousa na merda. 

Cai uma folha 
na água - 
Julho ainda. 

Amanhã haverá festa 
quando 
as lágrimas? 

Esta brisa como solidão 
sede de silêncio 
um espaço vazio. 

Dourada pelo Sol 
a minha pele -  
verde sempre verde. 

Que procuras libelinha 
na sombra do rio 
ao entardecer? 

Para quem o que 
no ar desenhas 
libelinha? 

Roça o pinheiro 
no eucalipto -  
o céu ignora. 

A água que há pouco 
no corpo 
agora eu. 

Eu que depois 
do último suspiro 
tudo e nada. 

Olhos em Espanha 
pés em Portugal 
lembra-me o invisível. 

Quantos destes 
ainda os pinheiros 
da minha infância. 

Escorre a prata 
em direção aos sonhos -  
verde distância. 

Não sei se a brisa 
se um pássaro 
que passou. 

Tanto verso inútil 
e aqui 
mais três. 

Trinco a sombra verde 
do pinheiro manso -  
encho os pulmões de calma. 

Atrás da montanha 
a nuvem 
desaparece. 

Sacho na terra 
gota de gente -  
aço quebra.1 

Pétalas no ar 
na minha pele 
as tuas lágrimas.2 

Na floresta de pedra 
dorme o cão 
sem dono. 

Olha-se pouco 
para as estrelas -  
amanhece. 

Na vila adormecida 
ladra um cão -  
estrela cadente. 

Cantam os grilos 
na noite lenta -  
o gato adormece. 

Na mesa sem gente 
a faca 
inocente. 

Passa por mim 
o vento -  
assobiamos. 

Muitas folhas caíram -  
cada vez  
sei menos. 

Tudo fecha 
tudo arde  
fragas permanecem. 

Já a chuva lavou 
o papel onde 
se limpou o cu. 

Este tédio 
que zumbe -  
canícula. 

Sombra que nada 
apaga -  
distância. 

Ouço no pinheiro 
o verde 
que passa. 

Eu e o gato 
passamos 
como tudo. 

Essa longa 
despedida -  
vida. 

Cheguei verde 
despeço-me 
amarelo. 

Cidões-Seixas-Moledo-Torre de Dona Chama 

Julho2019 

João Bosco da Silva 

1,2 Co-autor Nuno Bernardo