segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

 

A Minha Guerra e Um Saco de Caramelos

 

No dia anterior tinha-me dito que enquanto há vida

Tudo é possível, eu sorri-lhe, não o quis contrariar,

O destino está tantas vezes traçado, tão traçado,

Mas é preciso um treino angustiante que nos permita ler

As evidências dos últimos dias, faz-se o possível, apesar

De tudo indicar a inutilidade de cada gesto, mais um dia,

Com sorte, nunca sorte, um esforço tremendo,

Trapezismo sobre o vazio mais absoluto, estas mãos,

Que agora escrevem para se tornarem eternas, sorrio,

Para não me contrariar, ao menos mais um dia

Deu tempo à companheira, ao amigo, à mãe,

Um cartão onde se lê, és amado, fala em amizade,

Porque não encontrei outro, mas é amor, amo-te,

Tenta desculpar-se num desespero evidente,

Ele pede-me para lhe retirar a máscara do BiPAP,

Que diferença fariam uns segundo, um mergulho,

Um alívio, ser um pouco todo e independente,

Um pouco de água, a voz sem o filtro do plástico

E do sopro salvador, ilumina-se um sorriso, quase histérico,

És tu novamente, e a saturação do oxigénio a descer,

A máscara em punho e o dedo no botão, dou-lhes mais

Uns segundos, que diferença faz, mais uma hora,

Amanhã não estará aqui, pelo menos não em consciência,

A própria companheira compreende, que bom ver-te agora,

Mesmo que seja a última vez, a máscara quebra a ilusão,

Eles demoram-se uns momentos, trocam palavras possíveis,

Dou-lhes espaço, partem para sempre, pouco mais lhe posso

Administrar, seja o que for, será apenas adiar o inevitável,

Adormece depois de morfina e oxicodona, para aliviar

A dor da fractura patológica, a dor da partida eminente,

Depois de aumentar a dobutamina, levar a noradrenalina ao máximo,

Aumentar o oxigénio para sessenta e cinco, setenta,

As pressões do BiPAP, a furosemida para uma grama diária,

Confirmar o aumento galopante do lactato, o saco de urina vazio,

A acidez do sangue a abandonar o sete vírgula, quase um seis,

Adiantar a dose de cortisona, pensar que se calhar efedrina,

A sistólica a sessenta e oito, ele cinquenta e poucos,

Mais uma dose de albumina humana, fico ali em pé, a olhar

Para a fragilidade da vida, para a miserável condição humana,

Para o cartão e ao lado o saco de caramelos fechado que ninguém

Irá abrir, e não consigo compreender o que leva certos

Reis, a quem foi dado por homens o poder possível aos homens,

De aumentar a angústia, a dor, tornar ainda mais miserável

A condição humana, quando basta acordar e ter o azar

De uma célula mutante se multiplicar, eu ali em pé,

Vendo que contra a morte podemos muito pouco, mesmo

Dando tudo o que temos disponível para quem só tem um destino,

Contudo, continuam-se a usar todos os recursos pela morte,

Um saco de caramelos, um saco de caramelos e eu tão pequeno.

 

28.02.2022

 

Turku

 

João Bosco da Silva

 

 

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

 

Poetas Periféricos

 

A quantos graus está o teu mundinho, mete mais lenha,

Mas quê, já cortaste as árvores todas há anos,

Quem vais culpar então desse nevoeiro cerebral,

O teu pai, a mamã, foram os meninos a quem bateste

Na escola, não foram suficientes, o problema foi termos

Nascido entre dois mundos, se te perguntar se gostas

Dos INXS, que me dirias, que não ligas a bandas modernas,

Mesmo que te diga que têm uma música sobre ti,

Todos gostamos de levar à nossa maneira

E nada disso nos torna especiais, apenas nos torna

Naquilo que somos, tenho muito pensado,

Nas vezes, tantas, em que me devia ter deitado afogar

Ao rio, mas o rio levava pouca água, ou premido

O gatilho, mas então quem limpava a esterqueira de miolos

E merda, só vos digo uma coisa, há quem limpe,

E a corrente, leva sempre o que levar, normalmente

Um cadáver fica sempre pelo caminho, agarrado a um amieiro,

Ou negrilho, quase sempre estrangeiro, inglês,

Sem família, ou pescador pobre, quando o que interessa

Não convém a quem interessa, salta, salta, não escrevas

Nem mais uma palavra, não me gastes a companhia,

Nas noites solitárias, depois de ter adiado a morte de alguns,

Depois de acordar e de no espelho não ver vontade de continuar.

 

22.02.2022

 

Turku

 

João Bosco da Silva

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

 

Relatividades Invernais

 

Este deve ser o décimo Inverno deste ano,

Por esta altura devem ser incontáveis

As novas próteses de anca, a tosse parece acalmar,

Então começam a uivar os cães para os lados

Da Sibéria, miséria puxa miséria e ao contrário

De ser o amor, segundo o Ravelstein de Bellow,

O que nos puxa, é a desgraça, a vontade

De subjugar, é o sangue na neve, é o conforto

Da morte dos outros, distante, a vontade do poder,

Não sei, se calhar foi por estar protegido pela inocência,

Mas parece-me que os anos noventa, tiveram

Mais verões num ano, que estes últimos dez anos.

 

 

21.02.2022

 

Turku

 

João Bosco da Silva

 

Glória da Manhã

 

Às vezes sonho contigo, como sonho com ela,

A vontade é sempre quase uma necessidade,

De entrar, apenas isso, não procurar nisso o prazer,

Mas um espaço dentro do outro, uma aceitação,

Uma conquista num sonho, depois acordo

E o desejo que me empurrava para o mais fundo

Das tuas vísceras, longe como a madrugada,

Às vezes sonho contigo, como sonhava com elas,

Mas não te conto nada, fizeste-me ver o ridículo disso,

Levanto-me e acalmo a tesão com uma longa mijada,

Regresso à cama e quem dormiu ao meu lado

Admira-se, como posso aguentar tanto mijo dentro.

 

21/02/2022

 

Turku

 

João Bosco da Silva

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

 

Back in The Game

 

Tens-me sorrido em todos os sonhos nos quais me visitaste,

Com esse teu sorriso seguro, de quem tem a verdade na mão,

E mesmo assim, vendo a fragilidade da certeza de um amigo, sorri,

Mesmo que o amigo tenha a certeza que seja impossível

Estares ali assim, todo, infinito, eterno, imortal, porque morreste,

Então mais uma vez sorris, nesse teu último sorriso vivo, dentes cheios,

À frente de uma lista de gelados, e todo o meu cansaço te parece

Ridículo, eu que sempre tive medo de viver, que sempre preferi

Enfiar palavras com os dedos no vazio, do que dizer, do que aproximar

Os lábios, do que realmente viver, contudo, eu que não mereço, continuo,

Sem fazer falta, apenas carne e vício, uma vontade de apagar constante,

Um ridículo cujas palavras cada vez mais diluídas, o peso cada vez mais difícil

De encontrar num símbolo ou som, cá estou ainda, porque não posso

Ir em direção ao banco, e levantar-te de volta ao jogo.

 

18/02/22

 

Turku

 

João Bosco da Silva

 

Satakero 3

 

Podia escrever mais uma merda qualquer para ninguém ler,

Mas, tenho na mesa rena seca e uma cerveja aberta,

Na lareira as brasas estão no ponto para a chouriça espanhola,

O corpo está cansado, como há anos, depois de uma tarde

De Sol negativa, montanha sagrada acima e abaixo,

Até os músculos velhos começarem a prometer cãibras

Nos momentos de virar, podia escrever mais uma merda qualquer,

Mas o que tenho de mais profundo à mão, é que, mais vale

Conhecer alguém, só até que a neve comece a descongelar,

É que depois, tudo se revela, uma grande cagada de cão.

 

Pyhätunturi

 

11/02/2022

 

João Bosco da Silva


Isto, Aquilo, o Copo Vazio

 

Acabo de escrever mais um poema e tento enfiar-lhe uma data,

Dois mil e … vinte?... e dois, como pode ser isto, durar tanto,

Nem Cristo viveu tanto, estes anos todos, pior que uma couve,

Nem o raio de uma caldo-verde consigo ser, o chouriço vai aguentando,

Cada vez com menos fome, começou tão bem, a sede cada vez maior,

Não sei se sede, se vontade de ir mais rápido, não interessa,

Mas na verdade, nada interessa, a primavera continua a parecer

Impossível à distância de dois meses, o pinot noir começa a substituir

O aroma de certas mulheres a que não conseguia resistir,

Começa a tornar-se no cheiro que levava nos dedos para casa de madrugada,

Cravo-da-índia, e a tua hesitação no carro da minha mãe no final

De Setembro, como aquela noite à caça de porcos-monteses

No Alandroal, aquela bala que logo passei ao meu padrinho,

As rãs mudas depois da explosão, ao contrário daquelas no norte,

Enquanto deitado numa manta com uma prima afastada,

Eu que falhei ao meu avô também, segurar a caçadeira,

Apontar ao alvo colado à figueira com saliva de cirrótico,

A bala rebentou o coração do porco, o fígado rebentou no meu avô,

Eu espero, um fim qualquer, tantos copos vazios numa vida igual,

Aos poucos, regresso também ao poeta que era, quase quarenta anos

Agora, tenho o reconhecimento no silêncio, no esquecimento,

O Ferlinghetti sentado numa cadeira sorri para mim,

La LLorona do Picasso, chora, como a mãe que perdeu o meu

Melhor amigo, e eu continuo, inútil, empurrando mais um embolo,

Adianto um dia, uma semana, um mês, se calhar dando até uma vida

Que se valeu a pena viver, não isto, não isto, este esquecimento

Antes do inverno se tornar eterno, até os amigos, a estas horas,

Preferem mais um morto, já que enquanto o coração bate,

Não merece honras, cresce e desaparece, isto, aquilo, o copo vazio.

 

18/02/22

 

Turku

 

João Bosco da Silva

 

 

 


domingo, 6 de fevereiro de 2022

 

Rei

 

Morreu o Rei, tinha a aparência de uma civilização arruinada,

A cara mais enrugada que já vi e uma voz de incêndio,

Era um homem pobre e parece-me que foi sempre velho,

Nunca soube o seu verdadeiro nome, mas via-o sempre

Que visitava a vila, era uma presença constante

Como um monumento megalítico, dizem que adormeceu

E se ficou, esse raro privilégio dos homens livres.

 

Turku

 

06.02.2022

 

João Bosco da Silva

 

CJ Seoul Tower

 

Lembras-te daquela tarde de sol fria em Novembro,

Monte acima até à Torre Namsan, um dos lugares

Mais românticos de Seul, diziam, tu foste buscar

Uma doçura qualquer, havia no ar algo parecido

A algodão doce e farturas, logo aproveito aqueles

Minutos para consultar a distância, que se engasgava

Àquela hora com um caralho venezuelano

Mais barbudo que eu, mais tarde, quase contrariado,

No hotel, consegui vir-me no teu cu, que próxima

Do fim, decidiste, se calhar porque te deste conta

Do abismo, reabrir para mim, mas já sem o prazer

Daquelas geadas longínquas, se soubesse o que sei hoje,

Tinha ido contigo comprar as farturas ou lá o que

Os coreanos comem em torres de televisão e à noite,

Ter-te-ia fodido o cu com a delicadeza de quem sabe

Que tudo dura pouco mais que uma flor.

 

01.02.2022

 

Turku

 

João Bosco da Silva

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

 

Bo Carpelan

 

Tinha-o lido no início do verão, à beira do lago Saimaa,

Antes dum regresso fracassado à pátria, a uma noite ébria

De seis meses, quando voltei ao norte, tinha morrido,

Recortei do jornal aquele obituário simples, que guardei num livro,

Gostava de ter feito o mesmo àquele meio ano tenebroso.

 

Turku

 

28.01.2022

 

João Bosco da Silva

 

Degelo

 

Depois de uma tarde a foder, abríamos a janela

E ficávamos nus ao sol, a ouvir a chegada da primavera,

O descongelar luminoso da neve que há umas semanas

Parecia eterna, também eu partiria em breve, antes

Do regresso das aves migratórias, os nossos corpos, lado

A lado, encontrando naquele quarto uma amostra de eternidade.

 

Turku

 

28.01.2022

 

João Bosco da Silva