quinta-feira, 4 de junho de 2020


Breve Diário de uma Pandemia

Visitei o meu tio morto no Brasil, fazia mais de 20 anos que não o via,
Tive febre, estive duas semanas fechado em casa ao regressar,
Enfiaram-me um cotonete até ao cérebro e disseram que negativo,
Tive medo, não por mim, mas por quem me está longe e me é,
Os meus dias foram entre o hospital e casa e poucas visitas
Ao supermercado quando o frigorífico tinha fome e eu sede,
Tive medo, de não regressar só a casa, medo que mais uma máscara
Não fosse suficiente, cansei-me de ler o medo dos outros,
As estatísticas exclusivas e as demasiado inclusivas,
Estive mais duas semanas em casa, ao ponto de parecer uma prisão,
Desta vez não tive febre, nem mais um cotonete no nariz,
Fiz trinta e cinco anos e poucos dias depois morreu a minha avó,
Com quase noventa e cinco, mas foi apenas uma pneumonia normal,
Depois regressei ao hospital, o que matava continuava a matar,
Bebi, bebi mais do que nunca, sem medo, porque na verdade
Da vida não se leva nada, porque a vida não é nada, isso vê-se quando
Puxamos as pálpebras a um corpo ainda quente,
Tive medo, mais medo do que normalmente tenho,
A incerteza, que julguei tão minha, agora universal,
E tanto palhaço, tanto especialista do palpite, nunca vi,
Sabe-se muito pouco de quase nadas, mesmo assim, nunca vi tantas certezas
Nos lábios dos idiotas do costume, tive medo e tenho medo,
Não sei quando voltarei a dar um abraço sem medo à minha mãe,
Ao meu pai que apesar de duro, sei que é frágil como qualquer vida,
Fui falange, mas o meu medo maior foi dos grandes vírus,
Esses loiros idiotas que com o seu poder ignorante mandam no mundo.

Turku

04.06.2020

João Bosco da Silva