quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

 

Bacalhau Seco da Noruega


 

Distante está o bacalhau seco da Noruega,

Naquele tempo julgava que quanto mais andasse,

Mais a vida valia a pena, a vida media-se pelas distâncias

Percorridas e pelos diferentes tons de azul do mar,

Acumulados num canto, onde também os aromas

De todas as mulheres que estas mãos estranhas tocaram,

De tudo ficou apenas um eco, um nome a fazer de vazio,

Uma brisa marítima que seca o distante peixe da Noruega.

 

25.02.2021

 

Turku

 

João Bosco da Silva

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

 

Ecos do Amanhecer

 

Chegar onde os sonhos são apenas ecos pálidos do passado,

Sentir na ponta da língua o sal de uma pele dourada dos verões adolescentes,

Reler o livro favorito pela primeira vez, eternamente,

Não há linha recta que não te dê a volta, tens aprendido nas sombras

Mais difíceis as verdades impossíveis de agarrar,

Já ninguém te pede boleia numa noite de chuva

E depois para que sigas até à perdição em cruzeiros esquecidos,

Amanhecerá sempre com todas as ausências que o futuro agarrar,

Amanhecerá sempre, sejas tu dono de todos os vazios.

 

23.02.2021

 

Turku

 

João Bosco da Silva

sábado, 20 de fevereiro de 2021

 

Panero

 

Um cão ladra na agonia do vazio, a última memória num soluço,

A realidade é a flor da mentira que o vento cospe no silêncio,

Nus, nascemos, condenados ao terror, ao lamento e à dor,

A ciência é o horror à sujidade, é o grito nas trevas frias da noite,

O instante, o terrível reflexo das moscas no nada,

Verme nu queimado pelas horas do ser.

 

Turku

 

20.02.2021

 

João Bosco da Silva

 

María

 

Passa o suicida a unha nos ossos do cordeiro,

Iluminados pela Lua, tumba de todos os heróis,

Cantam as rãs com fúria, a ruína e o fastio,

O vento dos vencidos, destroçado no esquecimento

E na vergonha de um cadáver, deus é um nada idiota

E a poesia é o cadáver de um naufrago,

É a serpente que cospe esplendor na miséria

E no esperma, é o soluço de medo,

De uma boneca num jardim incendiado.

 

Olhava (comboio)

 

18.02.2021

 

João Bosco da Silva

 

Na Estação de Kemi

 

Passados mais de dez anos a Lua gelada de Kemi,

Onde estará a recepcionista daquele hotel,

Que acabou por dormir no meu quarto

E de manhã se despediu como quem se despede do verão,

A Lua parece ter mantido a juventude de tudo o que é eterno,

Alguém passa e olha-me enquanto a janela do comboio permite,

A Primavera parece impossível, mas não tarda.

 

Kemi

 

18.02.2021

 

João Bosco da Silva

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

 


“Um Comboio para a Lapónia”[1]

 

Como um amor antigo

o Sol toca

a barba gelada.

 

Silenciosamente

parte o comboio

quase vazio.

 

Quem pisará este chão

quando a neve

uma recordação?

 

Que respostas procuro

na lareira

que crepita?

 

Aproximo as meias de lã

à lareira estrangeira –

quando um abraço?

 

Rodeado por silêncio

branco

a noite estende-se.

 

Enquanto as batatas

cozem

o peixe espera.

 

Que palavras dançam

nas chamas

desta lareira?

 

Dois livros

meia-dúzia de paus

e uma noite.

 

Protegido por madeira

queimando madeira –

nem uma queixa.

 

Uma chávena de café

uma lareira

e todas as distâncias.

 

Sobre o mesmo galho

corvos e pombos

aproveitam o Sol.

 

Na mão nua

derrete

um punhado de neve.

 

Nos olhos do peixe

uma vida inteira

que passa.

 

No fuso de gelo

o brilho inteiro

de uma estrela.

 

Arrefecem as brasas

nunca esquecerei

as chamas.

 

Iluminado pela lareira

brilha na tua pele

o meu esperma.

 

As crianças fazem

o boneco de neve

como se o Inverno interminável.

 

Neva sobre a pegada

brevemente

ninguém passou.

 

O bruxulear

das últimas chamas

numa noite gelada.

 

Não sabes quão longa

será a noite –

aproveita a última chama.

 

Nunca conseguirás

reacender o que ardeu

até às cinzas.

 

Subir a montanha branca

descer a montanha dourada –

anoitece.

 

Amanhece na montanha

encolhido chego-me

à lareira apagada.

 

Preparo-me para descer

a montanha –

começa a nevar.

 

Esta dor nas costelas

ao inspirar

porque estou vivo.

 

Morreu-me

um amigo –

é tudo.

 

Voltei a sonhar

com o meu amigo –

dia de sol.

 

Reflexo na janela

do comboio –

que fiz dos anos?

 

Pyhä, Fevereiro 2021



[1] Título pela Tatiana Faia

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

 

Madrugada

 

Seis da manhã, não tarda, nascerá dourado o glorioso desespero azul,

Gelado como os sonhos lúcidos, não consigo lembrar-me do teu sorriso

Sem tristeza, que fiz eu dos teus olhos, da inocência que escolhi nunca ver,

Haverá pão fresco no ar dessa distância onde moras, perdoa-me

Todas as madrugadas e todos os cheiros intrusos que arrastava

Atrás do meu desejo por outras perdições, para a nossa cama quente do teu sono,

Dos amores sacrificados, nascem as manhãs de inverno,

Timidamente rasgando as trevas, sou todos os desencontros futuros.

 

11.02.2021

 

Turku

 

João Bosco da Silva

 

A Cor Do Rio

 

Não me lembro da cor da água do rio, naquela tarde de verão,

Lembro-me da aproximação ingreme das fragas abertas pela corrente

E os anos, lembro-me do brilho do Sol na água e dos teus olhos nos meus,

A irmã mais velha, fosse a cor da água a que fosse, estava-se bem

Ao teu lado depois do mergulho, não me lembro do que falamos,

Mas nada me pareceu mais importante e ao fim da tarde, quando o pó

Se despedia e os montes se pintavam de ouro vermelho,

Olhei as minhas mãos e pela primeira vez vi que eram as mãos de um homem.

 

Turku

 

10.02.2021

 

João Bosco da Silva

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

 

Amigo

 

Morreu-me um amigo, e dói-me, não por nunca mais o ver,

Pois tenho-o visto todos os dias, mas pelo que ele não verá mais,

O olhar ainda apaixonado da sua mulher, depois de vinte anos juntos,

Pelo que ele nunca verá, o sorriso imortal dos seus filhos adolescentes,

Morreu-me um amigo, agora será inverno todos os dias.

 

Turku

 

05.02.2021

 

João Bosco da Silva