domingo, 5 de abril de 2020


Saco de Laranjas e Lata de Cerveja

Segura bem o desespero, às vezes é o último copo da noite,
E sabes que todas as noites são a última, nenhuma manhã te salvará,
Nenhuma mão que se estenda será apenas um gesto de bondade pura,
Viveste tempo suficiente para levar o fim do mundo como mais um dia longo,
Não interessa que a poesia seja ruim, se mordeste a vida com os dentes todos,
Já pisaste a acrópole duas vezes num sol de purgatório,
Sonhaste o aço purificador debaixo de pinheiros delicados como certas púbis,
Viste os longos lábios de pedra que pariram a humanidade num sol de inferno,
Não houve Sol de continente que não te tenha mordido a pele,
Que fim interessa quando os bolsos novamente vazios e o coração pesado
Dos dias que não se puderam levar, chove sempre nos cemitérios,
Se não estão trinta graus, o silêncio pinga por dentro amargo como lágrimas
Que orgulhosamente se fingem não conhecer, segura bem o desespero,
Sabes bem que a segundos antes da meia-noite, nada levarás do que és.

Turku

05.04.2020

João Bosco da Silva


“Young and Beautiful”

Nunca regressarei luminoso como um Gatsby, tive essa ilusão
Há dez anos e também acabou em acidente de carro,
Todos sabiam de onde vinha, nunca ninguém soube quem eu era,
As pernas abriam-se com facilidade, as manhãs eram pesadas,
Os olhos dos meus pais empalideciam e o chumbo frio esperava
O desespero das noites delirantes, o olhar do abismo era esmagador,
Houve amizades que se redimiram da adolescência,
Me seguraram enquanto o mundo desabava em lugares sagrados,
Contudo, dez anos depois, duvido que sequer se recordem do anjo caído,
Aquele acólito tornado palhaço de tasco, sem medo de meter a piça
No nojo dos outros, a esta distância, depois de ter acendido e apagado
Mais vidas do que qualquer fecha tascos poderá algum dia imaginar,
Só me arrependo da delicadeza com que levei alguns dias,
Do silêncio que escolhi por cansaço ou consideração,
Da minha má companhia depois das garrafas vazias, das mulheres trancadas
Nos quartos seguros, do amor que mata o caos que faz o sangue correr.

Turku

05.04.2020

João Bosco da Silva


Garotos

Aquele garoto de olhos azuis obcecado por omoplatas,
Escrevendo poemas à luz das velas na companhia das galinhas
E do cheiro a feno, trago-o no peito desde o primeiro verso
Escrito na humidade de um quarto pequeno numa aldeia
Que os anos foram esvaziando de sonhos e futuro,
Aqueles primeiros poemas que pareciam salvar o mundo,
Descobrir a morada de deus depois de morto,
Escritos em papel barato com uma caneta de pena,
O mundo à beira do fim, como tem estado desde então,
O amor uma dor que se descobre nas noites mais quentes,
Cheias de insónia e lençóis cobertos de esperma e vergonha,
Aqueles olhos verdes recortando o vestido azul em eternidade,
As amiguinhas ridículas, preciosas, como o mar que leva o Sol,
Aquelas mãos que se cansaram de conquistar o mundo no papel,
Porque nenhum verso vale a pele quente que ficou por tocar,
Nenhum poema vale a viagem que ficou por fazer,
Só continua poeta quem não consegue acordar completamente.

Turku

05.04.2020

João Bosco da Silva


O Verão da Gazela

para a Cesar,

As estrelas multiplicaram-se naquele verão, a lua perdia a definição
Da inocência, as mãos tornavam-se cada vez mais pequenas
E o espelho ridículo, jogavam-se as fichas todas numa noite ruidosa,
Ficava-se com os bolsos vazios sem incomodar os passos incertos
Pelo caminho de paralelos abaixo, cheio de solidão no peito
E um tesão que nenhuma punheta apagava, a emigrante mais bonita
Da terra, dezanove anos, e nós deitados à vez no seu colo,
A olhar o céu quente, nunca me perdoarei o fracasso nos olhos dela,
Aqueles lábios em forma de sonho que nunca cheguei a beijar,
Aqueles lábios que me contavam que tantos amigos provaram,
Até o membro da banda brasileira da moda, aquela tarde derrotada,
Sozinhos em casa dela, ela sentada na cama à espera e eu a olhar
O rio da ponte romana, sem conseguir engolir o salto, mais uma música
Para ver a areia cair por entre os dedos, cada segundo um nunca mais
Mais próximo, voltei a vê-la quando já tinha as mãos cansadas
De sujar o que até sem vontade engolia, ela casada, cansada,
Longe dos dezanove anos, nos olhos que um dia cegos de desejo,
Apenas tristeza, aquele colo quente fazendo companhia às estrelas
Que se multiplicavam, na toalha ao lado, uma desconhecida,
Todas as minhas cartas de amor de certeza perdidas, pior, esquecidas,
Setembro chega sempre e por vezes dura o resto da vida.


Turku

05.04.2020

João Bosco da Silva

quinta-feira, 2 de abril de 2020


Haikus em Tempos de Cólera

Ignorantes e inocentes
festim para a morte –
assim é a vida.

O silêncio cortado
pelos grilos
a minha paz.

Com Issa no colo
o pai espera
a Primavera.

Pôr do sol nos olhos
a mãe suspira
pelos filhos.

As flores sem nome
tão belas
como o silêncio.

O mais poderoso
de todos os deuses –
Medo.

Não se pesa
o cansaço –
cai uma folha.

Nada é realmente
insignificante –
grão de areia no olho.

As ruas vazias
esperam
que o medo dure.

Luz acesa
no quarto vazio –
silêncio.

A palavra
que não se lembra –
pedra no sapato.

Do relâmpago
nada fica –
amanhece.

Recordações a preto e branco
como aquele fim de verão
na eternidade.

Os juncos daquele
Verão
hoje verde impossível.

Nos lábios distantes
azedou
o leite derramado.

Sobre a púbis dourada
os sonhos
bebem-se acordados.

Cabelo
sobre o papel
ainda me és?

Dançam as chamas
daquele pesado
feixe de lenha.

Ninguém lembra
os copos vazios –
amor.

Na almofada fria
nenhum vestígio
dos sonhos.

Com dentes de eternidade
agarram-se as palavras
ao papel.

Não será certa
a manhã –
apaga-se o candeeiro.

Turku, Março 2020

João Bosco da Silva


Barbeado em Nice

A última vez em que senti o Sol na cara, foi em Nice,
Um Sol branco de fim de Inverno sobre turquesa espumosa,
Naquelas frescas manhãs de sabão de Marselha,
Acho que ainda te amava, ninguém acredita que o amor eterno
Acaba mais rápido que um daqueles sabões perfumados,
A vida ainda me entusiasmava como a variedade nas lojas de queijo,
Quantos anos nos separam agora das carícias frias da maresia,
Do rubor sincero dos segredos ignorados ao Sol de Inverno.

Turku

02.04.2020

João Bosco da Silva