quinta-feira, 14 de julho de 2022

 

Como Levar Porrada

 

Tanto especialista em tudo e eu tão contente quando

Depois de lavar os dentes sinto a boca fresca sem sangue,

Aperto os cordões e saio de casa, mesmo tendo folga,

Respondo a um estranho mais perdido que eu,

É por ali, dou-me conta que gosto de mais uma uva

Rara da Grécia, da qual nunca tinha ouvido sequer falar,

Tanto especialista em tudo, que vidas levarão,

Sabendo tanto, duvido que descubram seja o que for,

Todos os dias uma caderneta de cromos completa, e eu

Contente, depois de finalmente ler o Marquês de Sade,

Por exemplo, eu feliz por ser o último a saber.

 

14.07.2022

 

Turku

 

João Bosco da Silva

 

Aquela Noite em Montmartre

 

És jornalista, perguntam-me no Café des 2 Moulins,

Eu no quarto charnonnay, moleskine aberto sobre a mesa,

A procurar uma linha que me ligue ao que fui,

Tentar fazer sentido com a passagem do tempo

E o continuar a ser o mesmo, sem o ser, a tua presença,

Por exemplo, quando não te vejo há uma década,

És jornalista, quando no dia anterior, no Le Wepler,

A empregada me perguntava com sotaque francês

Se era um actor e eu a julgar que tinha adivinhado

A minha linha de trabalho, digo que não, antes fosse, talvez um dia

E eu, espero que não, lá vieram as ostras e o Sancerre,

Quem lhe teria sido, nunca o saberei, agora jornalista,

Digo-lhe que não, que sou espião russo,

Dizem-me que todos são bem-vindos, afinal é Paris,

Montmartre, por fim confesso que, aquele caderninho,

É o alívio para a minha solidão constante, mesmo num café cheio,

Uma das duas perdeu logo o interesse, mesmo sem mencionar

Ser poeta, que é quase o mesmo que ser sozinho,

Num bar cheio, com um caderno a desenterrar o passado

Em páginas vazias, um jornalista da mitologia pessoal,

Tinha deixado a página numa vírgula, logo me tornei inconveniente,

Parte a segunda também, desiludida, no canto em silêncio,

Era tudo o que me imaginavam, até me revelar real, apenas

Um rabiscador solitário, entrando na noite, um copo atrás do outro.

 

14.07.2022

 

Turku

 

João Bosco da Silva

 

Janela Aberta numa Noite de Tempestade

 

Tornou-se isto na espera por uma catástrofe definitiva,

Tudo passa na língua com a textura de um vazio absoluto,

Mais um crepúsculo, mais um gole, mais uma ejaculação,

Tudo no vazio, a cópia de uma cópia estropiada pelo tédio,

Continuar como quem é levado, moribundo, a um autocarro,

Que nos levará de volta ao cansaço, depois do fim, de tantos fins,

Gastam-se as ilusões em copos vazios e mesmo assim,

Caminha-se com o glorioso peso de todos os fracassos,

Verões que prometeram ser infernos e se tornam em dilúvios,

Pandemias que terminam em guerras e novos medos,

As balizas enferrujam, as giestas tomam conta do campo da bola,

Quantos segundos serão dedicados por dia às glórias pequenas,

Relembrar na água que escorre numa janela o mais precioso tempo,

As mãos vazias, tão grandes na ilusão do seu alcance,

Um poeta, como se nisso houvesse alguma salvação,

O resto já se sabe, nas entranhas o tumultuoso emaranhado

De tudo o que foi perdido, que só a perdição derradeira aliviará,

Entretanto abre-se mais uma garrafa de vinho, antes da partida

De mais alguém, do próximo trovão ou da própria derrota final.

 

14.07.2022

 

Turku

 

João Bosco da Silva