terça-feira, 17 de março de 2020

Tropicalia We 

Somos donos apenas da nossa ilusão, convencidos da imortalidade 
Do nosso legado, vamos consumindo violentamente o nosso sustento, 
Trocamos o perigo da floresta pelo perigo selvagem do betão, 
Preferimos o medo do irmão a trocar de lugar na cadeia alimentar, 
Onde uma árvore cai, ergue-se um sonho sem futuro, 
Somos aquilo que merecemos, somos o fim do mundo que tememos. 

São Paulo 

07.02.2020 

João Bosco da Silva 
Página em Branco 

Quando nada parece fazer sentido, a página em branco salva, 
Ocupar o vazio, preenche, chove sobre os passeios sujos, 
Lava o carnaval para o esquecimento das sarjetas 
E a página em branco, imaculada, agora um espelho sujo, 
Uma companhia silenciosa, um sorriso grotesco para dentro, 
Quando nada parece ter sentido e a solidão esmaga como o betão 
Esmaga o horizonte, a página em branco transforma-se 
Nas flores inesperadas sobre o asfalto onde passam vidas. 

São Paulo 

07.02.2020 

João Bosco da Silva 
Chuva Tropical 

Sobre uma alma cinzenta a chuva cai, prometendo verde e sonhos de arco-íris, 
Mas os olhos fecham-se amargos, como todas as doces recordações 
Que o tempo azedou em distância, ninguém será aquele preservativo estrangulado 
Num nó sem pressa, ao lado das serpentinas e dos confetes do Carnaval passado, 
A vida é um carrossel, diziam-me aqueles olhos verdes no primeiros Invernos, 
Com a mesma inocência com que abria as pernas à vontade simples de mais um caralho dentro, 
A chuva cai e tudo tão distante que as feridas abrem como o deambular insone 
Numa noite de febre, o ar tropical incomoda a força melancólica dos dedos resignados, 
A estas horas ninguém chora, a neve parece impossível e o poema é o ridículo tangível. 

São Paulo 

07.02.2020 

João Bosco da Silva 
Haikus Tropicais 

Na fertilidade tropical 
crescem 
os muros. 

Sobre o asfalto 
dançam 
duas borboletas amarelas. 

Canta a arara 
o gato esconde-se 
irá chover. 

Que comem as pombas 
no meio 
da estrada? 

Como o cigarro 
não fumado 
aquela mulher. 

Limpo o cu 
e o mundo 
lá continua. 

Desconheço o nome 
das flores 
sei que são belas. 

Enquanto os grilos 
cantarem 
haverá Sol. 

Frio e quente 
mais real 
que bem e mal. 

Longe de casa 
sufoca no verde 
a figueira. 

Insecto cromado 
que perigos 
encerras? 

Onde os grilos cantam 
o verão 
na terra natal. 

Ninguém morreu 
se os trazemos 
nos dias felizes. 

É imortal 
que nos habita 
a saudade. 

À uma da tarde 
os grilos 
a eternidade possível. 

Do cemitério abandonado 
chega o livro 
de Bashô. 

Sabes que não é Agosto 
quando não conheces 
a fruta. 

Com tempo e distância 
tudo 
é nada. 

Nada se teme 
tanto como 
a certeza. 

Passa o carro da fruta 
que sonhos 
na noite passada? 

Que fome te leva 
a pedir 
ò sujo desconhecido. 

Cão de praia 
que iluminado foste 
noutra vida? 

Água de coco 
o teu sorriso 
a distância. 

O inferno no paraíso 
como luz e escuridão 
no universo. 

Tentar imortalizar 
uma vida desperdiçada -  
escrever. 

São Paulo, Março 2020 

João Bosco da Silva