segunda-feira, 28 de março de 2022

 

“La Conga Blicoti”

 

Com o lenço de papel sujo de vinho, tento limpar o monitor

Para escrever um poema qualquer que ninguém irá ler,

No monitor, morrões de pó, que mais acrescentar

À sabedoria do acaso, engulo mais um gole de alentejano,

Tento perceber os versos dispersos, os dentes negros,

Seria uma bela concubina no período Heian,

Para quê tentar organizar a perfeição do caos,

Sopro no monitor, quase inspiro fundo um ar fresco,

Pronto, posso começar, mas antes mais um golinho,

Swing 41 e um bochecho quase erudito, sem cuspir,

Posso estar a tornar-me invisível, mas ainda cá ando,

Se calhar os anos levaram-me o que realmente atraia

A gente, ou então perceberam que o meu maior talento

É soprar morrões de pó do monitor, com os dentes manchados

De vinho, enquanto alguém me grita do quarto que

Se quero foder, que não me demore no sopro,

Deu-me vontade de comer mexilhões n´au Clairon des Chasseurs,

Encostados ao muro do cemitério de Montmartre,

Um colchão ao lado do caixote do lixo como testemunha,

O marido ia acampar com os amigos, então um beijo apenas,

Uma mão arrancada dos jeans à pressa, o mesmo cheiro

Daquele mês de agosto, na varanda daquela tasca em Trás-os-Montes,

Tanta gente viva ainda que a vida parecia eterna e valer

Realmente a pena, volto a passar o lenço de papel no monitor,

Parece que magicamente tenho sempre um no bolso,

Não tarda nas mangas também, agora apenas pulgas quase invisíveis,

Também de pó, pontos apenas, não interessa, mais uma golada,

“Let´s do it”, anda tudo ao mesmo, já cantava o Cole Porter,

Mais uma vez, magicamente o lenço de papel surge e leva

O resto do poema do monitor, agora sim, posso começar.

 

Turku

 

28.03.2022

 

João Bosco da Silva

sábado, 26 de março de 2022

 


Haikus Árcticos

 

Mesmo que me levante

do banco de madeira

dançam as chamas.

 

Olho a lareira

o crepitar

ecos do passado.

 

Acender o lume

ou descascar batatas

que fazer primeiro?

 

Sobre a mesa

sal e copos vazios –

que cansaço esperam?

 

O mar e a neve

envolvem o perigo

com beleza.

 

Fim da tarde

a lareira

continua apagada.

 

O silêncio de madeira

desta cabana

uma companhia.

 

O silêncio de madeira

desta cabana

ocupa a noite branca.

 

Sobre a lareira

uma mandíbula

dialoga com uma vela.

 

Silencioso

na sua eternidade

o lago Pyhä.

 

Deste lado da montanha

diriam

que o dia é sombrio.

 

Deste lado da montanha

não se imagina

o belo dia de sol.

 

Como a neve é a paixão

revela-se quando derrete

a merda de cão.

 

Serpenteando no céu

da noite gelada

um rio esmeralda.

 

Pyhätunturi, 02/2022

 

João Bosco da Silva

Invicta

 

Tinha recebido há uns meses, naquele mesmo quarto alugado,

Uma galega e uma trasmontana, ambas vestiam

Calças brancas quando me esperavam em frente ao Hospital de São João

E fodemos até à exaustão e à hora da última carreira,

Era agora Julho e eu afastava-te as nádegas e vinha-me

No teu olho do cu, à noite sairias de casa rua acima,

Guiada pelas lágrimas, não sei por que crueldade minha,

De manhã compraria pão fresco na mercearia da Rua Tua,

E brincaríamos aos casais felizes, inocentes como uma manhã de sol,

Despedi-me de ti na Praça da Galiza, engolia as lágrimas num silêncio

Certo do amor e dos cornos, estaríamos meia década juntos,

Entretanto a mercearia fechou, a juventude passou

E do amor resta apenas um eco familiar e vazio.

 

Turku

 

26.03.2022

 

João Bosco da Silva

sábado, 19 de março de 2022

 


Ghouls´n Ghosts

 

Lembro-me da primeira vez em que cheguei ao fim,

Era uma tarde cinzenta, acho que a minha mãe fazia compotas,

Os vidros da janela da cozinha estavam embaciados,

Outros estavam tapados com fita cola castanha,

Lembro-me da primeira vez em que julguei ter chegado ao fim,

Só para perceber que tinha de começar do início

Com o dobro da dificuldade e com um poder quase inútil,

Mas essencial para poder defrontar o Loki e salvar a Princesa,

Naquela tarde não me apercebi que a vida seria aquilo,

Almejar chegar a um fim que não acaba, só para enfrentar tudo

Uma vez mais, com um grau de dificuldade incompatível com

A nossa experiência, que nos tornou obrigados a ser capazes,

Aprender a perder melhor, a perder mais, deixar as ilusões

Abrirem-se em desilusões colossais e continuar,

Um tio fascinado por cabos de alta tensão para os lados do cemitério,

A namoradinha do ciclo aos beijos com o bonitinho da escola,

Um avô que amarelece e já não consegue levar a colher da sopa à boca,

Tu emigrado numa ilha e a tua namorada a foder um estranho,

Outro avô que desce da mula para sempre,

Deixar a ruiva pela felicidade de um pesadelo nebuloso,

A avó que se esqueceu de ser, começar tudo de novo,

Repetir os mesmos erros com destreza, torná-los maiores,

Perder um país, arrancar as raízes na época da poda,

O amigo que te emprestou o jogo que parte para o fim

Antes do mundo acabar, quando falta tão pouco, finda a tua imortalidade,

Lembro-me da vez em que aprendi a temer o que o fim começa.

 

21.03.2022

 

Turku

 

João Bosco da Silva


quinta-feira, 3 de março de 2022

 

No Time para o Caralho

 

Até parece mal estar a queixar-me disto, sete dias seguidos

De trabalho, quase setenta horas, obcecado com a guerra,

Ver aos poucos a força de um povo ser esmagado

Pela vontade cega de um gigante louco, acordar e esperar

Que o exército invasor tenha o maior número de baixas possível,

Eu sei que são adolescentes, a maioria, carne para canhão,

Mas não consigo simpatizar com quem não tem objeção de consciência,

Depois é uma universidade que foi demolida e uma centena de famílias,

Depois é um comboio de 60 quilómetros há dois, três dias,

É o anúncio do apocalipse, a inflação, e eu despejo uma de tinto,

Começo a pensar, comprar dólares ou ouro, o que levar quando chegar aqui,

Pouco ou nada, do que vale, para onde se foge quando nada resta,

Então a bela ideia de fugir da realidade, o último filme do James Bond,

Aquele gajo imortal, superdotado em sorte e charme,

Grande erro, este século não é para heróis nem underdogs,

Até o caralho do 007 não pode fazer nada contra os mísseis

E é vaporizado numa ilha, para salvar a filha, e o mundo vá,

Se já nem nos podemos refugiar na ficção, esperemos então

A iluminação antes da escuridão eterna do pó e do anonimato que nos cobrirá.

 

Turku

 

03.02.2022

 

João Bosco da Silva