sexta-feira, 29 de maio de 2020


Saudades

No movimento de uma folha na brisa de uma manhã
Além das janelas, um verso de Hanshan,
Neste mundo sem montanhas, sem vontade, iluminado
Pena ausência do desejo pelo cansaço,
O novo Sol, é sempre o mesmo, a sombra é outra,
As plantas mirradas esperam a luz que os cloroplastos lhes pedem,
Não há sono quando as raízes sabem quem somos,
Gary Snyder fez 90 anos, eu só queria sentir o granito quente
Das fragas da minha infância na pele nua, no próximo Agosto.

Turku

29.05.2020

João Bosco da Silva


Só Mais Uma Enquanto o Povo Dorme

Tenho a felicidade a dormir, saberá qual é o prazo de validade do desejo,
Quantas ejaculações duram um amor, amores interrompidos são eternos,
Tivesse eu mais cigarros e queimava esta madrugada como fodia quando jovem,
A eternidade é como os pássaros que regressam na primavera,
O amor é como o breve impulso que nos leva a saltar da ponte quando garotos,
Parece haver sempre mais uma página em branco, só mais uma transgressão,
Sempre há mais um último pecado, nem que reste apenas a vontade de o fazer,
Tudo caduca na vida se não for queimado antes do prazo de validade,
Conservado como uma Pompeia, que visitamos como turistas,
Quando na verdade nós, aqueles corpos tão familiares como o sono.

Turku

29.05.2020

João Bosco da Silva


Um Bocado de Papel Higiénico Numa Casa Florestal Abandonada.

Sentado em frente a uma página em branco, ouvindo algo que traga um pouco do passado,
Porque só isso foi realmente vivido, o cu que agora sento nesta cadeira ainda está a ser,
Mas será, só quando se levantar se saberá, estou comigo mesmo, reconheço-me,
Velho amigo, eterno inimigo, mais uma lata vazia a caminho, o Sol prometeu uma despedida
A noite inteira, no entanto, só um estranho azul da cor da juventude e lagos no verão nórdico,
Relembro os gatos que o meu pai enterrou, ou o vizinho amigo, porque estávamos longe,
Relembro as gatas que lambi com a vontade de um condenado, abençoada juventude,
Que me moveria agora estes dedos amarelos de insónia e abandono,
Existe um certo prazer na agonia de encher o vazio com o que agora também nada,
A não ser que alguém também se lembre que houve luar no rio, naquela noite,
Como é que Bukowski terminaria uma coisa destas, parece que acabaste
De ler um bocado de papel higiénico numa casa florestal abandonada.


Turku

29.05.2020

João Bosco da Silva


Primeiro Beijo

Foi no cemitério da terra o nosso primeiro beijo, uma promessa de perdição,
Há eternidades de lábios cheios de ilusão mais breves que certas madrugadas,
Há pontes cheias nos olhos dos outros, onde passou um mundo inteiro de dois,
Absorvidos ambos pela fome de um quarto escuro onde lateje livremente a carne,
Foi assim, durou pouco, ainda te trago dentro na primavera, ainda te trago dentro
Neste cansaço que sou, a água daquele rio que testemunhou a vontade de dentro de ti,
O rio ainda passa, houve muitos amanheceres, nunca aquele beijo antes de ires trabalhar,
Que foi o último, apesar da fonte gelada anos mais tarde, estavas como eu,
Prometida ao aborrecimento, à obrigação da corrente pela qual no deixamos levar,
Por comodidade e depois se torna vontade, ou lava-nos o que a vontade foi,
Seremos amados ainda, fomos amados, a carne sempre foi sincera,
E é verdade quando te digo que quase morri, olhando-te nos olhos,
Enquanto entrava em ti, estrangulado pela impossibilidade de um futuro
E me vim contra a promessa dos inibidores da recaptação de serotonina,
Somos belas ruínas neste novo amanhecer, haja quem se beije no nosso silêncio.

Turku

29.05.2020

João Bosco da Silva

sexta-feira, 22 de maio de 2020


Mais Um Dia

Aos poucos deixamos de ser os protagonistas das nossas próprias vidas,
Salva as tuas lágrimas para as partidas definitivas, menos a tua,
As nuvens parecem montanhas quando tudo uma distância incerta,
Há incêndios que não se repetem, esconde melhor os sonhos,
Nada um outro, tudo um lugar marcado para mais um nada,
As folhas verdes que agora vês nesta primavera, nunca as viste antes,
Não te iludas, os sorrisos são feitos dos mesmos lábios que te cuspirão no nome,
Salva as tuas lágrimas para as páginas cheias, nunca o Sol,
Demasiado sal na luz ao longo da curta história dos inventores de deuses,
Outro dia virá e serás mais um figurante no que foi a tua história,
Os outros passam na rua com os seus papéis principais, ao menos, finges viver.

Turku

22.05.2020

João Bosco da Silva

quinta-feira, 21 de maio de 2020

Finlândria 

Foi num  verão de outra vida, a jovem finlandesa sentada ao lado do meu avô, 
Ele a perguntar-lhe de onde era pela quarta vez, Finlândria,  
As mãos nodosas apertavam aquelas pernas brancas, tem boas canetas,  
Hoje ambos apenas na memória, aquele gesto quase inocente, 
O sorriso tímido de quem não percebe a língua que falam, 
Tudo tinha já um fim marcado, continuo na Finlândia, vivo uma terceira vida, 
Cada vez mais estranho às recordações, visitam-me inesperadas 
Como sonhos de um fantasma, depois de dez anos, tudo parece 
Uma confabulação, aquelas lágrimas nunca foram minhas, 
Até este nome comum parece ter perdido o significado, 
Aos poucos só restará o olhar e o vazio. 

Turku 

21.05.2020 

João Bosco da Silva

quarta-feira, 20 de maio de 2020


Estranhos Em Espelhos

Quando me olho ao espelho, vejo sempre alguém que perdi,
Um sorriso fossilizado nas circunvoluções mirradas pelas estações,
Reconheço sempre um novo estranho à volta dos olhos,
Uma ruína que se aproxima em dia de tempestade,
Todos os sonhos objectos roubados a uma sombra emprestada,
Os anos querem impor-me novas responsabilidades,
Nunca consegui engolir os últimos espinhos, amei sem saber,
Não quando me sentava miserável à geada em bancos de jardim,
Adolescente como a minha biblioteca de lábios abertos,
Que estranho serei amanhã, que dono me tomará os sonhos de hoje,
Que tenha ao menos vontade, que morda, hoje tem sido uma resignação,
Todos os dias, hoje, sempre, hoje, pouco interessa o que está além do espelho,
Quanto muito uma escova de dentes por abrir, uns comprimidos para dormir,
Nenhuma promessa, parece ter sido tudo consumido pela vontade dos dedos,
Do meu lado direito um hábito que se tornou vazio, uma música que se ouviu
Demasiadas vezes, sempre o mesmo Sol, sempre a mesma luz, nesta pele estranha,
Não sei se tenho mais medo de morrer, se de viver uma vida que já não sou.


Turku

20.05.2020

João Bosco da Silva


“SO YOU WANT TO BE A WRITER?”

São já demasiadas as vezes em que me sento e espero,
Mais uma nuvem cobre o Sol, não suporto sequer o vento,
O verão parece nunca ter sido e ainda mal começou a Primavera,
Um buda que encontrou a eternidade numa pedra vulcânica
Troça do meu olhar no vazio que espera as palavras,
Tornou-se tudo tão inútil quanto ridículo, ou se esquece ou se morre,
No fundo é tudo o mesmo, só a perdição salva, a certeza do Inverno,
Quantas cervejas me custam um verso, quantas recordações
Sacrifiquei por mais um poema quase vazio, também as flores apodrecem,
As aves regressam, todas umas estranhas familiares,
Há lugares que não se sonham, como a Noruega, o teu abraço,
O quiosque da terra com o seu cheiro a jornal e eternidade,
Os dedos tocam incertos a vontade do espírito,
Ninguém acredita que um olhar cansado já viveu,
Por isso tudo continua com as mesmas certezas epicêntricas,
Sento-me e espero, outra vez, nem chove, mas tudo parece cair,
Como pinga a cera de uma vela, fria, como esta época de peste e medo.

Turku

20.05.2020

João Bosco da Silva

segunda-feira, 18 de maio de 2020


Epitáfio

O que me falta salvar com a minha ilusão, levo meia dúzia de mulheres,
As outras que me perdoem, não tenho tanto espaço no coração como
Nos tomates, alguns cães e outros ossos que encontrei no monte,
Gatos que se despediam como se soubessem, mesmo parecendo imortais,
Parecem sempre imortais os gatos, livros não precisam salvação, li-os,
Gosto de passar os olhos neles e sentir que vivi, mesmo só,
Que mais me falta salvar com a minha ilusão, o sorriso dos amigos mortos
Nas manhãs frias da matança do porco, os avós que quase todos juntos,
Alguns bêbados da terra, aqueles malucos cuja lucidez para muitos loucura,
Todos aqueles momentos que os dias vão apagando um a um, para dar espaço
Ao que nunca valerá a pena salvar, há tempos que nada merece um verso,
Mais duas semanas enclausurado no meu próprio purgatório,
Colecionando vazios e medos, crepúsculos que duram a noite inteira
E a noite nem chega, a estas horas devem estar a acabar o jantar,
O meu pai sempre o último a levantar-se da mesa, deve roer uma maçã,
A minha mãe deve olhar da janela da cozinha e lembrar-se de como
Eu gostaria de ter visto aquele céu incendiado, nem uma cerveja no frigorífico,
Que mais me falta salvar, já a ilusão se perde, como os muros de pedra que pareciam eternos,
E agora amontoados de esquecimento ou blocos de cimentos erguidos com desprezo,
Vi a minha avó morrer anos antes do seu funeral, a ilusão também não a salvou,
Escrevo poesia, ou isto, seja o que for, porque nunca aprendi a perder para sempre.

18.05.2020

Turku

João Bosco da Silva

sexta-feira, 8 de maio de 2020


Quarto Vazio

Nunca fui tão só numa casa vazia, como naquela da Rua do Almada,
As prostitutas patrulhavam os passeios sujos, os paralelos partiam
As montras de madrugada por uma fome endovenosa,
Eu fechado num medo que enchia páginas de rimas até me cansar,
Ainda hoje sonho com aquele quarto, dependente dos 150 euros,
Que trazia Marão abaixo, no bolso, uma vez por mês,
Nas noites em que a ressaca fermenta, regresso, sempre com uma mulher
Diferente, das que nunca entraram naquele buraco de punheta e tédio,
Ninguém sabe que estou ali, nunca, nem o senhorio,
Quem me pagará a renda agora, o quarto ao lado vazio,
Como estará hoje o fadista, que tanta guitarra tocou do outro lado
Daquelas paredes finas, sempre cheias de amor e gemidos,
E depois lágrimas e mais um nome que não se ouve falar,
Nas paredes o ridículo de poemas e linhas a fazer das mulheres
Onde queria fazer-me homem, como todos os que entravam nelas,
Nunca fui tão só numa casa vazia, num quarto vazio.

07.05.2020

Turku

João Bosco da Silva

quinta-feira, 7 de maio de 2020


Outro Rimbaud

Entre Harar e Áden, um poeta esquecido de si mesmo tenta arranjar fortuna
Para um esquecimento seguro, atravessando desertos com armas obsoletas
No seu próprio país, não versos, o sonho do mar acabou no Sol,
Ele era um outro, a sua pele endurecida pela canícula interminável,
Nem mais um poema, listas de compras, cartas repetitivas e aborrecidíssimas,
Pedindo isto e aquilo a uma mãe em sofrimento, e que está tanto calor,
Que outros tráficos não terão sido mencionados, que nome o daquela abissínia,
Contudo, a Itália foi repelida, Remington escreveu na carne, Manelique vence,
À custa de uns elefantes etc., quantas Marias Teresas vale o fóssil de um poeta,
Andarilho, sempre, descontente sempre, o poeta, não precisa do poema
Para o ser, basta a vontade abismal de distância e eternidade.

07.05.2020

Turku

João Bosco da Silva

terça-feira, 5 de maio de 2020


Primavera

A Primavera regressa sempre com a força de mil recordações,
Tardes à beiro do rio celebrando aniversários dentro de vizinhas e estrangeiras,
Todas aquelas virilhas de reputação duvidosa, estranhamente perfumadas
Pelo ar saturado de pólen e verde, o esperma escorria à segunda investida,
A noite arrefecia as promessas que o Sol fez à terra, tanta estrela para apagar,
Agora, as mãos desenham no ar aquilo que mais próximo de nada,
Pareço o único a lembrar, ou terei apenas sonhado a profundidade daqueles olhos,
A Primavera, entra dura, desabrocha até vontades esquecidas,
Mas já passaram décadas, já nos morreram mais do que os que inventamos,
E mais um poema é apenas a evidência de que sonhar é tão inútil quanto viver.

05.05.2020

Turku

João Bosco da Silva


Sonhos de Nata

Sonhei com a tua cremosa mentira, éramos quase estranhos outra vez,
A escuridão suja de uma casa quase abandonada e fria, acolhia-nos o pecado,
Sonhei com a tua cremosa mentira, escorrendo-me pelo amor ao nojo,
A vontade angustiante era de abismos, de uma cuspidela na boca luminosa,
Sonhei com a tua cremosa mentira, num sonho perfumado por madeira húmida
E telhados de zinco, o apodrecimento lento da inocência numa aldeia quase deserta,
Sonhei com a tua cremosa mentira, espalhada orgulhosamente no centro da tua vaidade,
Mas nunca o saberás, espelho das minhas traições desencantadas,
Sonhei com a tua cremosa mentira, formando uma aureola na minha carne pagã,
Encerrando o esquecimento que me impus, tem sido fácil o vazio.

Turku

05.05.2020

João Bosco da Silva