sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

No Galinheiro 

Li há anos Rimbaud no cimo de fragas, na cozinha do fumeiro 
Ao lado do galinheiro, debaixo do marmeleiro, caminhando 
Em caminhos de pó, sentando-me nos muros de pedra, 
Saboreando o sol, o regresso impossível, as amoras que virão, 
Nunca fui muito delicado, mas a vida perdi-a já, 
Agora não acredito que estou no inferno, ele está em mim 
E arde, arde como o futuro de todos os fogos de artifício, 
Canas inertes entre giestas que não tiveram a sorte do incêndio, 
Figos que ninguém comeu, na terra dourada e triste de Setembro, 
A estas horas nunca tive dezassete anos, nasci no horror do espelho, 
Cada dia confronto outros fins, camas cheias de dor que tento aliviar 
Com dedos que só esperam versos para desculpar o peso da alma, 
As galinhas gostavam de me ter ali perto, silencioso, despejando 
Copo atrás de copo de tinto da vinha do avô morto, agora ambos iguais, 
Se calhar eu também um dia, mas eu nada e já é noite. 


21.02.2020 

Turku 

João Bosco da Silva 
Aquele Vento a Preto e Branco dos Filmes de Kurosawa 


Dentro de ti apenas aquele vento a preto e branco dos filmes de Kurosawa, 
O amor de todos os cães e gatos mortos enterrados no quintal, 
Onde crescem todos os anos as couves do caldo verde que não provaste sequer, 
O tesão dos vinte e poucos em lençóis onde se misturavam  
Gemidos com diferentes sotaques, o Verão era uma vida inteira e valia a pena, 
Agora a vida um Inverno morno onde os invernos se contam duros, 
Ultimamente nenhum dia vale a pena levar ao verso, não é sequer tristeza, 
É uma boca seca sem sede, uma fome de preguiça, um sofá cansado de ti, 
São restos de vida, composto para fertilizar a esterilidade do que te tornaste, 
Não há amizade que te salve, secaram as couves com a distância, 
O amor teve mais um filho, não era teu, para não variar, está de férias na Lapónia, 
Com o corno do marido, foi um erro, diz-te, o abraço, perguntas, 
Ter bebido demasiado, pinta-se feliz, como todos nos pintamos, 
Cheios de sorrisos e ressentimento, ardemos por dentro, ou não, 
Dentro de ti apenas aquele vento a preto e branco dos filmes de Kurosawa. 

Turku 

21.02.2020 

João Bosco da Silva 
Latas Vazias 

E agora quê, sento-me aqui a chupar vazios, a olhar para cortinas imóveis, 
Nem um gato, podia acabar o mundo lá fora que nem dava por isso, 
Esperas o quê, que vá ter contido e me sente do teu lado, fingindo 
Que ainda consigo sentir, já não há palavras que me movam, 
Os meus poemas são rastos de lesma, viscosos, a minha almofada de tarde, 
Quando acordo, depois de encher mais um saco de latas de cerveja vazias, 
Devo ter morrido pelos menos cinco vezes e ainda não fiz nada desta vida, 
Acordar, outra vez, todos os dias, este que nunca se resgatará ao passado, 
Nem gás há nesta casa para poder escrever sobre bilhas, 
Tudo quente como num fim de vida, quando lá fora tudo chumbo, 
Cansaço antes de abrir a porta e sair, porque acabou o papel-higiénico, 
Agora levanto-me e vou ao frigorífico buscar mais uma lata, 
Enquanto a vida acaba, mas a que tinha sabor já acabou, continuo a mascar, 
Contando que ainda haja açúcar na lata da avó, ou encontre inesperadamente, 
Debaixo de uma mesa ou cadeira, algo anónimo e quente que me desperte, 
Como as casas de banho daqueles bares quando ainda ardia algo dentro 
E achava que era tudo para poemas futuros, mas o futuro sem dedos suficientes 
Para tanta fome, tanto dente cravado na vida, uma lata vazia, mais uma, como eu. 

Turku 

21.02.2020 

João Bosco da Silva