sábado, 4 de setembro de 2021


 

O Cheiro do Mosto

 

Que triste o doce cheiro do mosto,

Quando tudo partiu e apenas restam

Os últimos dias vazios, o tédio e a espera

Mais verdadeira e certa, a do fim,

Aos poucos as luzes apagam-se,

Na mesa ninguém mais se espera,

Restam as estrelas com a sua ilusão de calor,

Que brilharão à geada com a mesma força,

Que triste o doce cheiro do mosto,

Lembra a necessidade da morte,

A importância da sesta para encurtar os dias.

 

Torre de Dona Chama

 

29.08.2021

 

João Bosco da Silva

 

À Beira deste Mesmo Rio

 

“Estamos todos habituados a morrer de quando em quando e tão pouco a pouco que o que acontece é que estamos cada dia mais vivos.Infinitamente velhos e infinitamente vivos.”

Roberto Bolaño

 

À beira deste mesmo rio, vinte anos atrás,

Levei ao fim a luta de um velho com o seu destino escorregadio,

O choupo onde me encostei foi cortado e vendido ou queimado,

Outros tomaram o seu lugar e fingem uma mesma sombra,

Como a água a mesma e eu o mesmo, apesar do pó

Acumulado em duas décadas, sobre um espírito que despertava,

Ainda tão próximo daquela felicidade sem nome da infância,

Sinto na pele, que não voltará a ser jovem, a picada familiar

De um moscardo, de uma geração tão distante daquela segura era,

Não irei reler aquele livro, trago comigo outro escrito por quem

Há vinte anos vivia ainda, a ninguém é dado o tempo que merece,

Há quem mereça a eternidade das árvores, há quem não mereça sequer

A breve vida de um moscardo que a minha palma esmaga,

Tudo é injusto e inútil, contudo, à beira deste rio, quase parece

Possível tocar a eternidade, num lugar onde se deixou a felicidade

E ainda é possível regressar, outro, vinte anos depois.

 

Cidões

 

12.08.2021

 

João Bosco da Silva

 

Milénios na Memória

 

Pergunta-me como foi a minha passagem de ano no final do milénio,

Estranhamente, não me lembro de grande coisa, as uvas passas,

Com um pouco de espumante ao que chamávamos champanhe,

Uma ligeira espectativa de que se calhar um pagão ou um apocalipse

Do mesmo calibre, pouco depois da meia-noite, cama

E acordar em mais um dia no mesmo mundo, muito melhor

Me lembro da passagem de ano seguinte, o baile de finalistas

Daquele ano, na extinta discoteca da vila, a primeira nota de cinco euros,

Os últimos escudos e os primeiros finos, as raparigas tão apetecíveis

E a fome tão grande, acabar a noite a comer tostas mistas

Enquanto o amigo das férias, já em casa, enfiava a manga

Da camisola do pijama numa perna e adormecia, naquela noite gelada,

Que não fosse por isso, mais parecia uma longínqua noite de Agosto,

Lembro-me que me tinha apaixonado pela primeira vez no verão,

Parece que antes disso, passar aquele nível nas nuvens do Sonic 2,

Era como dar um beijo atrás da carrinha do pão à emigrante francesa

Que partia no dia seguinte, o mundo afinal, tinha acabado naquele verão.

 

10.08.2021

 

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João Bosco da Silva