segunda-feira, 14 de junho de 2010


O Burro De Zaratustra

Se a noite não deixasse cair tanto ao mesmo tempo
Só porque a escuridão lhe permite abusar dos olhos cansados,
Eu até podia respirar e deixar-me ser até à madrugada dos cegos.
O verde diz-me que está tudo para acabar, sempre,
Nunca esteve de outra forma, ou não estaria nada
E eu a duvidar da sua verdade longe da areia.
As leis dão-me vontade de ladrar bem alto,
É verdade, dá-me vontade de ser cão entre estes burros todos,
Que nem me deixam ser dono da terra onde for morrer,
Nem me permitem ser a minha incoerência individual,
Querem que todos orelhas compridas e ruminates de pernas curtas,
Querem que todos os ouçam na sua voz de deus,
Que cortavam o ar das manhãs na aldeia antes do sino dar as sete.
Iiiiiiióóóóóóóó iiiióóóó iióó iióó ió ió íó ió,
Amén e vamos todos para casa fingir que cumprimos com a obrigação,
Apagar a luz e abraçar a escuridão para poder gemer como antes da televisão,
Ou visitar a vizinha se o marido estiver hoje a trabalhar de noite e ela tão só,
Todos tão humanos e sempre tão vazios,
Sempre com vontade de alguém que nos mostre algo novo em nós,
Sempre crianças fartas dos brinquedos que temos, porque os outros sempre melhores
E é verdade, é sempre verdade, não fossem já as duas da manhã,
Com o verde a mostrar a carne de longe que hoje dorme e já não cheira ao meu abuso.
O que não fazem uns lenços de papel para apagar marcas de dois corpos confusos
Numa madrugada indecente e com cheiro a animal na época do cio,
Nós sempre, sempre, sempre e amén.
Hajam arraiais e fogos de artifício para esconder atrás de muros de granito,
Nos limites da terra onde se sente o cu a rasgar na pedra, de olhos nos olhos com as estrelas
A fazer esquecer os copos de plástico lançados no vazio.
“Não te lembrarás disto amanhã”, como se isso fosse bom.
Quero lembrar-me de tudo, quero que a noite deixe cair tudo,
Que me corte a animalidade antes de levantar a pedra onde dorme o escorpião
Escondido do calor da tarde de Agosto que virá, que vem sempre,
Mesmo que já esteja apagado e só puro, mais puro possível.
Quase ouço daqui o iiiiiiióóóóóóóó iiiióóóó iióó iióó ió ió íó ió,
Mas vindo da solidão da noite, atrás, na nuca, onde a mão cai quando vergonha.
“Para que entraste nela?” Porque assim desejei e estava aberta
E é tão difícil querer verdadeiramente algo, quando os sentidos tão saturados e confusos com tudo.
Se forem já quase duas da manhã e as sete tão longe, ainda pior,
Só os dedos ainda cheios de outras, que já arrefeceram,
Tão presentes na memória das órbitas se passos cansados a encurtar o verde.
Quantos pontos finais desde o cemitério de Montmartre,
Depois de ter acabado já a história e ainda um beijo roubado ao esquecimento,
Fugido de um presente eterno, com o roxo a fazer de verde além da meia-noite,
Com a luzes húmidas e mágicas de Abril em Paris.
Iiiiiiióóóóóóóó iiiióóóó iióó iióó ió ió íó ió,
Vestidos de azul-marinho e com ar de algo que não é de verdade,
Parecem os faróis inúteis numa noite de insónia na praia dos dezassete anos,
Quando o mundo parecia estar na palma das mãos ou a caminho dela,
Vazia e forte na esperança, quando o mundo era algo que se queria,
Tudo tão grande e excitante numa noite longe desta, tão cheia no futuro
E esta que é do futuro, tão vazia, grande só nos sonhos cadáveres,
No sotão poeirento onde o verde é cínico e fecha os olhos lentamente,
Como um assassino solidário, que nos deixa cair de joelhos,
Nos acolhe nos braços até que para sempre e uma linha vermelha a crescer de nós,
Brilhante no luar que sempre só, me acompanha.
As pedras lançadas naquela tarde de sol,
Lá no fundo frias e inertes, para nada e eu à espera de ser pedra,
Lá no fundo ao lado dos que saltaram pela água até que não foi possível mais.
Que mais é possível depois de uma vida?

14.06.2010

Savonlinna

João Bosco da Silva