terça-feira, 5 de outubro de 2021

 

Fúria e Vinho

 

Há algum tempo que não consigo sentir nada mais do que fúria e vinho,

Sinto que fui lobotomizado, pela dor, pelos comprimidinhos

Para me fazerem berrar com uma doçura de lã no rebanho,

Engraçado que só depois de encontrar Egas Moniz

No meu cérebro raquítico, dei com o picador de gelo supraorbital

E a palavra lá surgiu, costumavam cair, agora tenho que procurá-las

Num sótão escuro e poeirento, de onde todos os brinquedos da minha

Infância foram atirados para o lixo, vinho e raiva, este que há oito

Mil anos é produzido naquela região, tão escuro quanto a tinta

Que agora não uso para meter este lixo no teu cérebro,

Um picador de gelo, no entanto, tenho sonhado com o amigo morto,

Dou-lhe uma palmada no joelho, como se a sua morte fosse a maior partida,

Bem me apanhaste com essa, infelizmente, também não me lembro

Da última vez em que tenha sonhado sem saber que aquilo é tudo

Uma almofada babada, um ressonar ridículo, à espera de uma sede

Absurda, de uma manhã sem sabor, copos vazios para lavar

E uma escova eléctrica mais escura que o carvão, pouco me interessa,

Como sinto a palma a bater num joelho que existe apenas no meu cérebro

Lobotomizado, que não sente nada mais a não ser fúria e vinho tinto,

Não sei, como não compreendo como o cheiro das folhas da figueira

Que aos poucos, tão pequena, se desnuda no súbito outono nórdico,

Me aquecem como uma lareira, sem as brasas furarem os sofás

De poliuretano, uma palavra difícil como a vergonha, por isso raras

Me visitaram, por causa daqueles buraquinhos na minha alma,

Como no sofá, tanto complexo para agora abrir o saco do lixo,

A alma, o podre dos sonhos, o maior segredo de um homem, o seu vazio.

 

05.10.2021

 

Turku

 

João Bosco da Silva