domingo, 4 de dezembro de 2022

 

Visita à Biblioteca de Adriano

 

“é terrivelmente difícil amar estátuas em ruínas”

Tatiana Faia

 

à Tatiana,

 

É difícil compreender o número de catástrofes

Que acumulamos ao longo da vida,

A persistente ruína de carne em que nos tornamos,

Após incontáveis apocalipses pessoais,

Terminam amores tão sólidos como as colunas

De um templo, que um agricultor usou

Para proteger a vinha do ar salgado,

A fé salta de ilusão em ilusão,

Dependendo da crença em moda ou medo,

Com sorte, o nome de uma rua permanece,

Imutável como um nome próprio,

Irreconhecível para quem a baptizou,

Levamos ainda o colapso de todas as civilizações

E isso sente-se na saudade pelo que nunca

Vivemos na carne e sentimos apenas no sangue

O silêncio que o tempo impôs às pedras,

Dura mais um momento que a vontade de eternidade,

A visita numa tarde quente à biblioteca em ruínas,

Que distante revisitarás, no livro da mesma poeta.

 

04.12.2022

 

Turku

 

João Bosco da Silva

 

Arrefecimento

 

“habituámos-nos a que

nos esqueçam”

Yannis Ritsos

 

Quando a fome te despe os sentidos e suavemente

As primeiras geadas te visitam a solidão,

É porque chegou o tempo das fogueiras e dos segredos pagãos,

Despertam lentamente os sonhos antigos,

Como quem acorda com a boca pintada pelo vinho

Que um avô morto pisou, friamente cintilam as estrelas

Como o mais belo copo de cristal vazio,

Numa manhã de sede maior, em que o despertador,

A faca do coveiro que abre caminho ao sangue,

Do coração do porco cevado à bacia de plástico,

Chega o inverno que nunca esqueceste e o verão,

Que ainda ressoa na pele, mora agora num canto esquecido

Na companhia dos mitos da infância e dos amores frios.

 

Turku

 

15/11-04/12/2022

 

João Bosco da Silva