Ouço um pica-pau
a neve escorre
enfim chegaste.
Como o que parte
Alva chega
com a primavera.
06/04/2024
Turku
João Bosco da Silva
Vinha a mim uma Vinha
Vinha a mim uma vinha, dragões centenários
Em equilíbrio xistoso, um chiste no seu sorriso
Libidinoso, o mesmo entre os lábios escondidos
Da galega, hajam razões para que a morte
Se torne num esquecimento, as janelas remendadas
Com fita cola castanha, todas as vergonhas
Do mundo naquela primeira vez,
Vinha a mim a vinha e nos seus olhos
O futuro do que lá ficou, desamparado
Num pedaço de papel, lágrimas de cera
Roubadas em cemitérios ainda vazios,
O que fica é tão pouco que se aproxima do nada
E assim a um passo do infinito.
26/02/2024
Turku
João Bosco da Silva
Eterno Retorno
Ruínas do meu povo, migalhas sob um céu de chumbo,
O verde que se apreça nas evidências do meu sol,
Os sonhos claudicantes antes do trabalho
Pago com a ingratidão dos dias, migalhas sobre uma mesa,
A toalha cinzenta de ausências, raros são os dias bonitos
E acordar é um desassombro polido no fumo das cavernas.
Turku
03/2023
João Bosco da Silva
Primeira
À beira dos segredos correntes do velho rio,
Coaxavam a rãs, viscosas de luar e cio,
A ponte intemporal, vestígio de brumosas
Recordações de impérios abatidos pela inevitabilidade,
Tudo convergente no teu abrir quente
Da vontade à minha promessa vazia de serotonina,
Sempre me amargou um pouco a chegada
Da primavera, ter que acordar com a nova luz,
Por isso me debrucei sobre o teu metálico gosto,
Despertou em mim o erro da bula
Numa surpresa de espuma, puxada de dentro
De ti, sobre ti, até ao luar dos teus olhos,
A prova maior de estarmos vivos,
Ignorando a lua levada pelo rio,
O perfume dos amieiros arrefecidos pela noite,
O silencioso trabalho da semente das papoilas
Nos campos adjacentes e o pulsar irreflectido
Do nosso sangue quase adolescente
Nas têmporas acariciadas pelo orvalho do nosso esforço.
18/03/2024
Turku
João Bosco da Silva
Último
Revelam-se os cadáveres no degelo
E no peito escorre um mel tornado fel,
Pelo tempo e a distância, a tal saudade,
O pior de envelhecer é esquecer
E perder a nitidez dos seus lábios
Naquele último beijo, cujo lugar também se perdeu,
Nada é mais certo que um último beijo.
07/03/2024
Turku
João Bosco da Silva
Na Nossa Natureza
Leio-te com a vontade do mendigo
À prisca cuspida no passeio,
O escarro tuberculoso na fruta fresca,
O tesão esforçado dum velho rico
Rasgando o amor ganancioso da adolescente,
A minha língua temente em preces
No olho do cu de uma mãe embriagada em cio,
Trocar a eternidade lenta e morna
Por um chafurdar breve na lama da transgressão,
Contudo sentir o merecimento do sol na pele,
Acreditar na redenção pelo esquecimento.
11/03/2024
Turku
João Bosco da Silva
Eterno
Degelo
Que
dizem do gelo as estrelas
E
da profundidade maligna dos sonhos,
A
lama repetente dos desejos,
A
fome de loucura e luxúria,
Conta-me
tempo, do canibalismo
Símio
dos profetas, palitando dentes
À
sombra de figueiras e catástrofes,
O
ritmo é lento e o erro certeiro,
Gelam
as mãos ainda,
Tudo
aos poucos se revela
Como
um maldito amor moribundo.
Turku
11/03/2024
João Bosco da Silva
Um Luar para que não Esqueças
Longe, um quarto vazio que não espera, visita os sonhos
Após dias vazios e longínquos, para que se trazem
Os mortos nos bolsos, não os outros, mas os que fomos
Morrendo, há alegrias simples, a acidez fresca
De um prato familiar, as geadas de granito,
O cinzento mar das montanhas do interior,
Tudo um sufoco de urze por florir, será que um dia
Teremos realmente o mesmo céu, como o mesmo medo,
Querem-se os joelhos mordidos pela palha dos palheiros
E as micas das fragas, querem-se os dentes afiados
Pelos tropeços nos intervalos, todos os segredos restantes
Uma gaita de foles vazia, hajam relâmpagos no fim do verão,
Um regresso para apalpar as uvas e as recordações,
Um luar de primavera para que não me esqueças.
Turku
03/02/2024
João Bosco da Silva
Danos Colaterais
Vai e vem o inverno, há amigos presos nos dias que foram,
Do vinho só se espera o sono e o afrontamento precoce,
Enquanto o café sobe, mais um copo de água na oliveira
Que definha à janela, lá fora o mundo parece lento,
Mas tudo uma preguiça, um cansaço de veias secas ao alto,
Toca-se como o fogo, mas da fúria resta apenas a vergonha
E o arrependimento, o cheiro que se tenta esconder
Das manhãs evidentes, os danos colaterais murmuram
Como ecos numa casa assombrada, ninguém sabe bem
O que anda por aqui a fazer e cada um finge o melhor que
pode,
O que fica dos sonhos é uma almofada babada.
30/01/2024
Turku
João Bosco da Silva
CV
Sou a antítese segura, o desejo secreto dos recorrentes,
A espuma da raiva da manhã, a geada no canto da boca,
O mistério da fé e do ridículo, o colo estéril da gula,
O sonho dos mortos, o caudal esquecido da extinção,
Contudo nas mãos vazias, mundos de ilusões,
O cansaço emprestado dos avós, a pegada do copo vazio,
Tu que julgas as graças dos anjos, condenas o inevitável sono,
Que esperas das juntas pregas de visco e vício,
Deixa-te cair em tentação, como num sono morno,
Não esperes mais, o amanhecer será sempre mais uma volta.
Turku
28.01.2024
João Bosco da Silva
Caminhar
Caminhar numa ilusão de pálpebras,
Inertes os estremecimentos de cada passo
Batido no silêncio acolhedor do Inverno,
Tudo parece ter a distância do último dióspiro
Na árvore, a importância do arrependimento,
Os dentes escondem sorrisos tenebrosos
E sonhos que inquietam até a coagulação
Do sangue mais viscoso, os corvos esperam
O passar das eras, o esquecimento
De todas as civilizações, estar aqui,
Nunca permanentemente, permeável
A todas as tentações, punhos fechados
Nuns bolsos solitários, a caminho apenas,
Esperando o regresso como a certeza
De todas as primaveras, esmagar segundos
Como quem pisa cristais de neve
Num sufoco que ninguém lembrará,
Seremos apenas a ausência da água,
Uma sede que terminou, um olhar
Que se encontrará apenas nas palavras,
Até que a última seja esquecida.
13/01/2024
Turku
João Bosco da Silva
Aquele Outro Porto
O Porto tornou-se numa recordação coberta de bruma,
Numa manhã cinzenta de Janeiro, ecos diluídos pelo tempo,
Aquele preservativo usado ao virar da esquina,
A colega que aos poucos se solidificou numa personagem
Tão real como a de qualquer filme daquela época,
Rua do Almada acima pela mão do namorado cabeludo,
Segurando uma garrafa de vinho, eu a fazer-me tão invisível
Quanto julgava ser, mais uma loja de ferragens ou segunda
mão,
O drogado à entrada do Pingo Doce, à hora do almoço,
Eu de pizza no saco e moeda pronta no bolso para pagar
portagem
E um obrigado doloroso, um quase amigo, aquela Ribeira
Tão imensa à beira de todas as decadências possíveis,
Tão sombria em olhos inocentes ao pó da história,
Aquele Porto do tamanho da maior cidade do mundo,
Não fosse o refúgio dos amigos da terra, que traziam os dias
quentes
E as últimas gotas de felicidade, numa cidade, onde julgava
Ter encontrado o seu fim absoluto, teria asfixiado o verde restante,
Aquele Porto eco, neste Porto que por vezes revisito
Com certa alegria, eu tão estrangeiro como ele e quem nele
Agora vive emprestado, agora como uma velha amante que não
se toca
Há anos porque a nossa idade domou o desejo ou o calcificou
Numa estátua inerte e tosca, de quem olhou para trás com saudades
do pecado.
10/01/2024
Zurique-Helsínquia
João Bosco da Silva
Ah, a glória do que quase foi cometido,
Nesta fria manhã do último sol do ano,
Na companhia silenciosa de um café,
A glória daquele quase passo em frente
Antes de virar costas para nunca mais,
A resposta que se deu em palavras ditas
E não apenas no ruminar da almofada,
Todos os beijos, sim, todos os quase beijos
Que ofuscam a verdade dos que cederam
À coragem, ao salto no vazio, todos os poemas
Que ficaram no espaço entre os que foram escritos,
Os dentes em todos os pescoços
Naquelas fragrantes boleias de Junho,
Aquele último cartucho do avô morto,
Guardado para um irreversível mau momento,
Em vez de no ar de uma noite desesperada,
A abrir eternidades em direção às estrelas geadas.
31/12/2023
Turku
João Bosco da Silva
Um Tropeço Nos Dias Frios
Tenho enfrentado o peso dos dias, o seu sorriso branco,
A sua ilusória leve aparência, alguém me pergunta,
Poderia estar eu morto no segundo seguinte,
Sorrio como os dias me sorriem, estamos sempre mortos
No segundo seguinte, como no anterior,
Vivemos numa linha fina e esperamos a primavera
Como se a nossa eternidade dependesse do renascer geral,
Têm-me visitado quartos escuros onde se entrou
Uma só vez, e agora é tudo o que resta,
Para aquecer as cinzas da solidão dos momentos,
Não é que tudo me pareça mais distante,
O problema é que me ouço como um grito coberto
Por uma avalanche, tudo isto enquanto espero a chegada
De um novo Sol, visitam-me ainda as partidas,
Os reencontros impossíveis, as dores que não se engolem.
30/12/2023
Turku
João Bosco da Silva
Uma pausa para a
eternidade
Nas folgas,
costumava sentar-me num bar
E depois de uma
ou duas cervejas, surgiam os poemas,
A caminho de
casa, sentia-me leve, salvo, como depois
De uma
confissão, não me lembro da última vez
Em que me sentei
num bar e escrevi na companhia
De uma cerveja e
do então sempre presente moleskine,
Quero acreditar
que esses momentos se reflectem ainda
Na eternidade, como
aqueles que partiram,
Cuja existência
perdura nos ecos, nos passos,
Que trouxeram
tudo ao que é neste momento,
No entanto,
sento-me agora na biblioteca,
A caminho do
centro da cidade em procura
Deste alívio,
cada vez se tem menos tempo
Para contemplar o
que somos na passagem,
Relembrar quem só
em sonhos agora nos visita.
Turku
14.13.2023
João Bosc da
Silva