quinta-feira, 29 de outubro de 2020

 

Obra ao Cinzento

 

Já vi morrer mais gente, do que gente que fodi, o que é triste,

Bebo, tenho bebido, sem ter como intenção libertar o medo dos olhos,

Os anos oitenta foram há vinte anos, tal como o virar do milénio,

Que há a dizer sobre isto, a não ser que é verdade a teoria de Einstein,

O Michael Jackson nunca morreu e o Saramago continua a ser

O único nobel português vivo, foi tudo num virar de estações,

As madrugadas sabem a fastio lento e longo, uma espuma cinzenta

De mercúrio preguiçoso, todos os acentos, um aborrecimento adiado,

Um gemido fingido depois dum suspiro açaimado, Annie are you ok,

Vamos pedindo mais uma francesinha, sorrindo a velhos amigos,

Fingindo que o rio passa e a caravana ladra à frente dos bois,

Mas nada está bem, não se somam sonhos, contam-se vontades,

Fracas, escorregadias, como pérolas falsas de um colar que se rompeu

Numa casa de banho de deficientes, na pausa de um filme sobre

Um livro de Tolstói, sujas, pequenas, as pérolas, depois

De outras pérolas engolidas à pressa, para regressar ao tédio do filme,

Anna Karenina, are you ok, are you ok, Annie,

Meia dúzia de pérolas de plástico no bolso, e alguém diz que não,

Não se continuará a adiar a morte, duas miligramas de adrenalina,

Em vão, cento e cinquenta joules num coração para o talho,

Outro que bate, contente, um necromancer moderno e licenciado,

Para se vir numa foda e perguntar, fodi bem, não fodi, sim fodeste,

Agora que te engoli, sonha meu rei, praias brasileiras, ressacas de coco,

Laranjas colhidas da árvore, vespas da terra, dorme, necromancer,

Poeta, anjo do apocalipse, vergonha de copo vazio e alma de garoto

A quem num dia de chuva, outros dois da quarta classe, lançaram numa fossa sanitária.

 

29.10.2020

 

Novigrad

 

João Bosco da Silva

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

 

Colegas de Trabalho

 

Tanto amor pelo plástico colorido, pela carne borbulhante como sangue aceso,

O helicóptero leva mais um corpo meio apagado ao cansaço dos hospitais centrais,

Alguém tenta dormir sobre uma almofada babada, depois de duas miligramas

De adrenalina e cento e cinquenta joules até um pulso, um ritmo acendido

Num corpo sem gás, amanhã alguém decidirá que não vale a pena,

Conseguimos adiar mais uma morte, foi apenas isso, como acordar mais um dia,

Conseguimos adiar mais uma morte, seja num corpo sem morte anunciada,

Ou num corpo cujo mistério espera o acidente do acaso, a carne borbulhante,

As nádegas palpitantes nas pupilas mal iluminadas, no sonho, a vontade

De um abraço estrangulador, aquele cabelo loiro, espesso como o esperma

Prometido num olhar, alguém diz que tem o terceiro filho a caminho,

Nunca ninguém acusou que o que engoliu lhe tenha impedido a próxima menstruação,

Aquele cabelo espesso como a vontade impossível, quinze anos mais jovem,

Mas nas papilas a vontade clara da decadência do abuso consentido,

Será que me sonhas agora, como eu sonhei aquela miúda das limpezas,

Naquele verão ainda longe do outono, enquanto te ofereço num copo minúsculo

Um líquido branco, que te cura da azia causada pela mixórdia de leite azedo

Que engoliste do teu jovem marido, e aceitas, dizendo que tanto, tragas tudo.

 

 

Turku

 

29.10.2020

 

João Bosco da Silva

Vazio em Copo Sujo

 

Estou demasiado cansado, podia ir dormir, mas estou demasiado cansado,

Vou em vez, abrir mais uma garrafa de vinho, chupar o passado

Da medula óssea, passar a língua nos dentes e fingir, que de olhos na parede,

Estou outra vez lá, onde fui, com as unhas cravadas no musgo fresco,

As calças de ganga rasgadas pelo granito das fragas, chumbos quatro e meio

Entre os dentes, com os pardais na mira, aquelas pernas brancas das procissões

Do verão, o cheiro do único quiosque da terra a jornal fresco e banda-desenhada,

O amor num toque monotónico quando o saldo quase zero,

Contar os caracteres, esperando que o amor não demasiado longo,

Em vez de, uma garrafa de Bordeux, mais uma garrafa de Bordeux,

Antes era apenas uma cor na boca da minha mãe, cor de vinho quase,

Hoje estou demasiado cansado, até para dormir, porque para dormir

É preciso força para estar vivo e há dias do tamanho de anos,

Que até o sono me dá vontade de uma cama fria, um corpo ausente,

Mais um ridículo universo apagado, um copo vazio, lábios lívidos esquecidos.

 

 

Turku

 

28.10.2020

 

João Bosco da Silva


 

Auto dos Danados

 

 

Acordar cedo para acender o lume, dentro o vazio, o resto crepita lá fora,

Uma geada épica como a fome de batatas, a roupa estendida, bacalhaus

Que alguém esqueceu, como amores que aos poucos se esquecem,

Não fosse a insónia e a falta de pinhas para acender outros lumes,

Os vizinhos apertam as cafeteiras e aproximam as garrafas de aguardente

Antes de pegarem nas enxadas para cavarem a terra ainda dura,

Os dedos ainda azedos, cheira tudo ainda a cu lavado, amor enquanto dura,

As macieiras imaginam doçuras ainda impossíveis, tu chegas, aproximas-te

Das chamas ainda frias, o teu corpo parece outro coberto de roupa,

Ainda te amarei, em sonhos talvez, de outra forma, vazio e ódio,

O ódio sempre mais fácil quando as mãos vazias, ou alguém dentro

De um corpo que não pertence e foi tão nosso, o escano de madeira sabe,

Fode-me, fode-me, diziam os teus lábios de puta inocente,

E eu ia tão fundo que encontrei amor, ou sei lá o que foi, hoje, não sei,

Hoje que os lábios vazios e roxos, cansaço, um cemitério sem ossos,

Apenas ausências, noites incontáveis sem sonhos, tardes em sofás sem ilusões,

Apenas recordações pálidas, cada vez mais o nevoeiro, a velar as formas,

Lembro-me que as tuas areolas do tamanho da minha fome inteira,

Rosadas como imaginava a luxuria, mas aos poucos até a tua fome do meu esperma

Outra, dizias, que no início normal, e depois menos fome, não pedias,

Vem-te na minha boca, se calhar a tua boca cheia de futuros estranhos,

Que só por delicadeza, não aceitavas na tua cona imaculada,

Então engolias, amigavelmente, a troca de ilusões que eu já não

Consegui fingir dar, foi cedo, a fogueira, tudo, tarde, como a despedida.

 

Turku

 

28.10.2020

 

João Bosco da Silva

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

 

“Ask the Dust”

 

Foi tudo como um sonho de madrugada, breve como um último beijo,

A humidade dos pinheiros em Novembro, os lábios um sorriso curto,

A lua uma unha envergonhada na bruma, como o segredo de dois amantes,

Que lado a lado vivem as vidas que escolheram mostrar,

Foi tudo leve como as manchas da relva na ganga de umas calças pequenas,

Uma rã que cai no tanque, ou uma maçã que desiste de amadurecer,

Tudo fica longe, os anos ditam responsabilidades que não se aceitam,

Tantos, quando só uns dez ou quinze valeram realmente a vida,

O resto é acordar, dia após dia e fazer de conta que o amanhecer

Trará algo de novo às papilas saturadas pela cinza e pelo pó.

 

Turku

 

15.10.2020

 

João Bosco da Silva

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Sauna 

 

Em ti, até aos colhões, amor, tu pedes-me que te mije dentro 

E então acredito mesmo que seja amor, não é fácil manter o equilíbrio 

Que permita libertar a urina e manter o tesão em standby, 

Pronto para mergulhar no próprio mijo, chafurdar nele, 

Até começar a esguichar para todo o lado, estou tão cheia, 

Aguenta, não deixes sair, tão quente, tanto, dizes-me, 

É mesmo amor, deitas a cara sobre a madeira quente da sauna, 

Deixas-te vir enquanto começas a ceder e vertes-me em jactos, 

Aumento o ritmo, a nossa pele dourada na luz ténue das velas, 

Quero tudo na minha boca, dizes-me quando sentes 

Que me aproximo da ejaculação, voltas-te ávida 

E sorves o visco do meu orgasmo, depois beijas-me e desligas a sauna. 

 

11.10.2020 

 

Turku 

 

João Bosco da Silva

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

 

Clamídia

 

A vingança é filha da honra, um alívio cuspir na cara

Que acendeu a nossa com a mão, não há corte maior,

Um jogo da sardinha com as palmas a arder e um dente

A abanar, o avô ainda imortal a sorrir com os dentes

De vinho, a tua cona ainda cremosa por outro caralho

E na minha gaita ainda o arrependimento

Da colega de trabalho, o alívio de uma mão vazia,

Os dentes cerrados, no táxi de regresso, naquele

Jantar de ano novo, espero que a azitromicina

Te tenha caído bem, a ti também e a ti que nunca soube

Quem, que logo agora que pensava num filho,

Tenho que esperar pelo que diz o mijo no copo.

 

09.10.2020

 

Turku

 

João Bosco da Silva

 

USB Cronenberg

 

Para festejar um novo nobel vou tentar meter o USB no slot disponível,

Mas decidiste que ias meter a do anão na cona, porque a minha mais pequena,

E agora tenho três buracos, enquanto já gemes, longe, num quarto extinto,

Onde entrei num cu onde me vim como três vezes, senti anjos saírem da gaita

Dando graças à geada que lá fora iluminava a manhã onde sol de certeza,

Tu gemias desinteressada e eu nem me dava conta que nada daquilo fazia sentido,

Demasiados filmes de David Cronenberg, se calhar uma ménage assim mesmo,

Eu a tentar enfiar a gaita na entrada USB, sabendo que apesar de que menor

Do que a do anão, não tão ridiculamente geometricamente pequena,

Nem cu nem cona, mais uma vez acabei por ter que me assumir encornado,

Nem tive vontade em acordar, mas nunca te conseguirei explicar que a vingança

É uma filha legítima da honra, por isso mergulhei ainda mais no REM

E acordei num quarto às quatro ou cinco da manhã, numa fronteira,

Um ex-quartel da Guarda-fiscal, uns cinco anos depois do big-bang,

E à noite na casa da vizinha espanhola, espreito pela frincha da porta da

Casa de banho, uma velha de uns vinte anos a mijar, que me sorri,

E pega num pedaço de papel-higiénico e esfrega aquele peludo monstro galego,

Belo, abre a porta enquanto fujo para o colo da minha mãe, com medo

Daquela vontade estranha, daquela necessidade de enfiar algo no slot USB.

 

09.10.2020

 

Turku

 

João Bosco da Silva

 

“Morango do Nordeste”

 

Foi um verão de morangos e gazelas, eu um defunto do primeiro amor,

O ground zero ainda cinzas e gemidos, o amigo brasileiro nunca mais regressará

Depois de um inverno trasmontano, a lua nunca me pareceu tão cheia,

Logo este ano que já não tinha as piscinas pagas pela junta de freguesia,

Tinha que calhar ser filho de autoridade com todos os benefícios

De ser o único pobre salário numa família de quatro, foda-se,

Não bastaram os meus dois amigos com o mesmo nome, o filho

Do barão dos móveis carunchosos, ainda tinha que calhar o baterista

De uma banda nordestina do Brasil, mas era amor, era amor,

E o sonhador era eu, mesmo depois de me ter arrastado do sofá da sala

Para o quarto dela, para ouvir tudo menos aquela música de merda,

Hoje perguntam-me, mesmo enquanto calmamente leio sobre

Uma nova extinção, ou um atentado, ou a reeleição de um presidente,

E olho tudo como o vazio, porquê essa raiva dentro de ti,

Só consigo sorrir e pensar que os morangos que tenho no frigorífico já apodreceram.

 

09.10.2020

 

Turku

 

João Bosco da Silva

 

Aquela Puta Grega

 

Nunca me fingiu um orgasmo, a sinceridade é como um outono que não acaba,

Agora dorme, se calhar, enquanto bebo mais um Campari com sumo de laranja,

O Hemingway espera numa capa vermelha de 1958, não sei porque esperei tanto

Pelos meus dezasseis anos, não sei porque não vivi mais os meus únicos dezasseis anos,

A amiga da minha irmã com as pernas abertas na cama do meu avô bêbado morto,

Agora ambos a olhar os meus dedos a tirar da cova mais uma mão de terra em direção

Ao inferno, nos pêlos do meu mento a sua excitação viscosa e adolescente,

E todas dormem de certeza, a não ser que um filho acorde, um marido bêbado

Regresse com os dedos azedos e um hálito vermelho, ou já esteja a ressonar

Há horas depois do último jogo de futebol ou de outra merda qualquer

Que iluda como mais um orgasmo, não os nossos, esses estão garantidos

Até nos sonhos, trocamos só a roupa interior, o hálito o mesmo,

Nunca me fingiu um orgasmo, mesmo assim, diz que tenho um caralho perfeito,

Contudo engulo um pouco mais de vitamina c e ecos de escaravelho,

E choro, ressono, bato a porta com força sem querer e sonharei com aquela puta grega.

 

Turku

 

09.10.2020

 

João Bosco da Silva

 

Amor

 

O amor, o amor é sempre o mesmo, seja que aperto seja,

Nas pregas ou nas rugas, o amor é sempre a mesma festa,

Acaba neste verão, no próximo começará outro,

É sempre demasiado curto, como uma noite de arraial quente,

Mas o amor, esse é sempre o mesmo, seja a pele mais morena

Ou a emigrante pálida na procissão do santo da festa,

O amor é sempre o mesmo, como a estrada, as curvas,

As giestas e as testemunhas da fome desse amor ser saciado,

O amor é só fome, às vezes até arroz branco alivia essa fome,

A maior parte das vezes uma grade de cervejas e o ombro

Mais próximo, o resto é paciência, honra ou resignação,

A amor são aquelas curvas na estrada à noite até lá chegar,

Depois é um bar que fecha, um copo vazio, um carro embaciado,

Depois é um verão que acaba, um inverno que chega, sempre o mesmo.

 

Turku

 

09.10.2020

 

João Bosco da Silva

quarta-feira, 7 de outubro de 2020


 

Encoberto

 

Gosto dos dias nublados, há no horizonte a possibilidade

De montanhas, até o céu mais próximo, o silêncio branco,

Os sinos tocam de outras eras, ecoam nostalgias familiares

Nos passos desconhecidos, se calhar começa uma montanha mesmo

Atrás daquelas árvores pintadas com despedida, se calhar,

A motosserra que corta o ar a de um vizinho antigo ainda vivo,

Se calhar estas mãos ainda capazes de todos os sonhos esquecidos,

Além da bruma ainda me esperam, de calças brancas, loira, ruiva, morena,

Com o meu nome ainda bem aceso nos olhos da cor da juventude,

Se calhar uma aldeia logo depois daquele muro de leite cinzento,

Os cães ladram sem trela, as galinhas fogem da lâmina, longe do plástico,

Põe-se a mesa, tinem os talheres em convite, se calhar

Não estou tão longe, tão velho, tão cansado da partida constante do tempo,

Hoje não haverá Sol, mas trago-vos a todos dentro.

 

07.10.2020

 

Turku

 

João Bosco da Silva

terça-feira, 6 de outubro de 2020

 


A Crise

 

demais

muito pouco

insuficiente

 

gordo demais

magro demais

ou ninguém

 

riso ou

lágrimas

ou imaculada

negligência.

 

os que odeiam

os que amam

 

exércitos correndo pelas ruas de sangue

empunhando garrafas de vinho

esfaqueando e fodendo virgens

 

ou um velho num quarto barato

com uma fotografia da Marilyn Monroe

 

muitos velhos em quartos baratos sem

qualquer fotografia

 

várias velhas esfregando rosários

quando preferiam estar a esfregar caralhos

 

há uma solidão neste mundo tão grande

que a podes ver nos movimentos lentos do

ponteiro do relógio

 

há uma solidão neste mundo tão grande

que a podes ver piscar nos sinais néon

em Vegas, em Baltimore, em Munique

 

há pessoas tão cansadas

tão esmagadas

tão mutiladas pelo amor ou falta

dele

que comprar uma lata de atum em promoção

num supermercado

é o seu momento mais sublime

a sua maior victória

 

não precisamos de novos governos

novas revoluções

não precisamos de novos homens

novas mulheres

não precisamos de novas formas

troca de esposas

camas de água

cocaína

colombiana de qualidade

canalizações

vibradores

preservativos estriados

relógios com data

 

as pessoas não são boas umas para as outras

directamente.

raios para o Marx

o pecado não é a totalidade de certos sistemas.

raios para a cristandade

o pecado não é o assassínio de um Deus.

 

simplesmente as pessoas não são boas umas para as outras.

 

temos medo

achamos que o ódio é força

achamos que Nova Iorque é a maior cidade

da América.

 

o que precisamos é de menos brilho

o que precisamos é de menos instrução

 

o que precisamos é de menos poetas

o que precisamos é de menos Bukowskies

o que precisamos é de menos Billy Grahams

 

o que precisamos é de mais

cerveja

datilógrafos

mais tentilhões

mais putas de olhos verdes que não te quebrem o coração

como uma vitamina

 

não pensamos no terror de uma pessoa

sofrendo num lugar

 

sozinhos

intocados

ignorados

regando uma planta

sem um telefone que jamais

tocará

porque não existe.

 

mais os que odeiam que os que amam.

 

fatias de desgraça como tafetá

 

as pessoas não são boas umas para as outras

as pessoas não são boas umas para as outras

as pessoas não são boas umas para as outras

 

e as contas balançam e as nuvens ocultam

e os cães mijam sobre as rosas

e os assassinos decapitam as crianças como quem dá uma dentada

num cone de gelado

e o oceano vai e vem

vai e vem

sob a direção de uma lua insensível

 

e as pessoas não são boas umas para as outras.

 

Charles Bukowski, Second Coming. Vol. 5 No. 1 - 1977

Tradução: João Bosco da Silva

 

 


O Último Sol de Setembro - Haikus

 

Sabes-me

a longa despedida

Sol de Setembro.

 

Chegar ao fim

sem dar um passo

também é viver?

 

Não deixa de ser

amargo

o último Sol.

 

Calças brancas

ignorantes

do meu desejo fossilizado.

 

Sob a macieira

apodrecem maçãs –

cheira a Setembro.

 

Dentes escondidos

como as folhas

de Outono.

 

As folhas caem

os grilos cantam

ainda o Sol.

 

Arrefece o meu corpo

com o dia –

fim de tarde outonal.

 

Atrás de mim

sobre o musgo húmido

cai a folha amarela.

 

É doce ao Sol

o cheiro pútrido

do Outono.

 

Brilham ainda na folha

as gotas de orvalho –

fim de tarde.

 

Que doce arrefecer

entre

folhas caídas.

 

A rapariga na bicicleta

regressa da escola –

também o verão acaba.

 

Ao lado do poema

cagou uma mosca –

tudo está certo.[1]

 

Com Buson ao colo

que prazer

o último Sol de Setembro.

 

Pudesse eu guardar

este Sol

para as longas noites geladas.

 

Torna-se mais belo

o verde

tocado pelo Sol.

 

Muitos passos ouvi

e nenhum

na minha direção.

 

No prado verde

só os grilos

me saudaram.

 

Uma nuvem insignificante

apaga o dia

indefinidamente.

 

Contrariando o frio

anunciado

aquelas árvores vermelhas.

 

O teu desejo

como a árvore

hahakigi.

 

Nem um buraco

escavado nos prados –

esqueceram as formigas-de-asas.

 

Permanecem em silêncio

as pedras

depois de pisadas.

 

Quero aqui guardar

o último sol

de Setembro.

 

Setembro 2020, Turku

 

João Bosco da Silva



[1] Inspirado no poema de Buson: “Um gato mordisca/a flor de uma cabaça - /tudo está certo”.

 

A Queda das Folhas

 

Na piscina fria apenas a companhia da sombra e das folhas que já apodrecem,

Chupou-se o Verão como quem respira por uma palhinha os dias quentes

E distantes, que correm pelos dedos como areia fina de uma ampulheta partida,

Nos dentes o sabor ácido das maçãs que cresciam no cemitério de carros apreendidos

Na alfandega da Guarda-fiscal, as vespas esperam a doçura da fruta que mancha

Os campos de ténis esquecidos, as memórias são emigrantes que há muito não regressam,

Os sonhos são estranhos que um dia nos entregaram o corpo, somos estações

De comboio abandonadas, onde ainda cheira à madeira escurecida pelo óleo e despedidas,

Que acordar vazio nos trará a almofada babada por todas as ausências,

Em que distâncias acordaremos, amantes de mãos vazias, enquanto as folhas caem.

 

06.10.2020

 

Turku

 

João Bosco da Silva