terça-feira, 7 de dezembro de 2021

 

Um Poema Sobre Pó

 

Passo a mão no teclado, olho a linha de pó que ficou agarrada

À minha mão esquerda, isto poderia ser um verso, num sopro

Apago a linha, olho um instante a mão vazia e começo a pousar

Os dedos nas teclas limpas, procurando o caminho de um poema,

Vou cheirando o vinho que sobrou da noite, apesar do dia

Frio como ontem, hoje o dia é outro, também o vinho,

Uma amiga diz-me que gosta de Fitzgerald e do Gatsby,

Esse livro que li pela primeira vez a caminho da capital,

Para um torneio de basquetebol de rua, todos estávamos vivos,

Reli-o mais tarde pouco depois do meu avô ter morrido,

Agora ao meu lado Terna é a Noite, nesta escuridão precoce,

Fecho os olhos e penso na cor do mediterrâneo na Riviera,

Estranho que se encontre mais facilmente o sol quando se fecham

Os olhos, no meu copo de escrever, o vinho espera o calor

Dos meus lábios que ainda há pouco sopraram um verso,

A juventude naquela linha, os amigos, os autocarros que nos levaram

Sem regresso, os amores que a erosão dos dias tornou em areia,

Uma mão cheia de negligência e nada, um poema sobre pó.

 

07.12.2021

 

Turku

 

João Bosco da Silva

terça-feira, 30 de novembro de 2021


Haikus Alpinos



Ramo de alfazema

no bolso do casaco —

dia de nevoeiro.

 

Neste dia de nevoeiro

qual é

a nossa distância?

 

Encontrar serenidade

no lago

do nosso descontentamento.

 

Belas são as montanhas

e a distância

que nos separa.

 

Apesar do nevoeiro

com clareza se vê

o fundo do lago.

 

Eternos brotam

da neblina

os picos alpinos.

 

O poema que tenta

captar as montanhas

surge insignificante.

 

A gata roça a cabeça

na minha perna –

existo.

 

Desertas as vinhas

das uvas

e da sede.

 

Últimas folhas de outono

na árvore

da memória.

 

Suiça, Novembro 2021

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

 

Chablis

 

E se um dia nos encontrássemos em Chablis, na maresia pura

De um copo de Chardonnay, poder-me-ias contar as tuas aventuras

À Anna Karenina do sul, nessa tua capital do nosso país,

Eu poderia falar-te da minha fixação anal e do aperto que me acompanha

Nos intermináveis outonos nórdicos, que faríamos nos dias cinzentos

Enquanto as vinhas esperam a luz que lhes amadurecerá os bagos,

Levaríamos baguetes ao quarto de hotel, garrafas em cestos de vime,

Representaríamos o papel que tantas vezes sonhámos na capital francesa,

Faríamos amor em direção ao desencanto, imitando as garrafas vazias

Que acumulamos num canto, ao lado do coração, confessaríamos

Um ao outro como durante décadas o fizemos, o que nos leva ao desencanto,

O que cedemos ao desejo, um dia, se calhar noutra vida, em Chablis.

 

15.11.2021

 

Turku

 

João Bosco da Silva

quinta-feira, 11 de novembro de 2021

 

Louça Suja

 

A escultura grotesca que é a louça suja amontoada

Lembra-me a vida, que me custa enfrentar ao acordar,

Adia-se a obrigação, cancela-se mais um encontro,

Menos um copo sujo, há vida naquele monte,

Uma construção que a ordem e o detergente farão desaparecer,

Contudo olhar para aquilo pesa nos olhos,

Pesa na consciência quando lhe viro as costas

E me debruço no acto inútil de escrever um poema

Sobre louça suja e vida, há sempre a possibilidade

De um copo cair ao chão, um prato se partir,

É o risco que se corre quando se acrescenta

Mais um verso, respira-se melhor na aridez metálica

De um lava-louça deserto, por isso terei que terminar

Este fazer para dentro, pegar no esfregão e viver.

 

Turku

 

11.11.2021

 

João Bosco da Silva

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

 

Novembro

 

Volta o mundo a encerrar-se numa apneia escura,

Numa nudez de ossos e ramos fantasmagóricos

Erguidos ao mercúrio frio do céu demasiado baixo,

Voltam a ser poucos os prazeres que façam o dia valer

O gasto da vida, um café quente que não se deixou queimar,

Acordar sem a necessidade de um despertador,

O silêncio na casa para te receber de braços abertos,

Espaço para respirar e suspirar em segredo,

Sacudir dos cantos do bigode o que ficou dos sonhos,

Pouco se levará daqui, a não ser que se inventem

Novos pecados, transgressões ainda permitidas

A cadáveres ressequidos pelo cansaço e pela derrota,

Volta a luz a ser rara, o cérebro mirra, como as folhas

Da figueira, a poucos dias de Novembro, nada interessa

Agora, a primavera impossível também há-de chegar.

 

28.10.2021

 

Turku

 

João Bosco da Silva

terça-feira, 19 de outubro de 2021

 


Chouriças para Lambões

 

E se vos fosseis todos foder, que tal, vós que nunca tocastes os tomates

Do absoluto, tão cheios de palavras e de efemeridades, barrigas cheias de nada,

E se fosseis todos limpar o plástico do rio, que foi esquecido dos moranguinhos doces

Da aldeia abandonada que bem chupastes quando convinha,

Em Vilar de Ouro, vinho glorioso houvessem nomes de peso a dar-lhe alma,

Noventa e nove diria o senhor Parker Jr. e se vos fosseis foder,

Isto não é fácil com uma de André e duas de Bordeaux,

O Alexandre despertou agora todos os fãs do mundo quando há dez mil geadas atrás,

Sentando num radiador eléctrico, líamos o Duende dado por um velho amante,

Antes de subirmos o monte de São Brás, amante da irmã do mestre,

Que hoje num sossego absoluto aparentemente, se resignou à vida esperada,

Não a que lhe esperei, nunca se espera resignação de um mestre,

Por isso continuo a engolir tinto muitos anos depois, ficando surpreendido

Com um cu que se me abre quando me tinha prometido que nunca,

Aquela ruiva, aquela ruiva, aquela ruiva, foram reais, até à última gota,

Ou terão sido todas sonhos numa, numas noites vazias, que triste agora, olhar os dedos,

Errar,

As teclas, estes mesmo merdas que limpam o cu, que se meteram nas conas que desejaram

Um erro, porque sempre fui um erro, uma sardinha assada a mais, um copo

De alvarinho minhoto a mais, mais valia ter-me levado o rio mais os bonecos,

Valerá mesmo a pena mais uma manhã em direcção ao nada, encher chouriças,

Será justo depois do amigo me esperar, para falarmos dos filmes do Kubrick,

Ou do amadurecimento das cerejas, será justo, estar eu aqui ainda a testar a resistência

Do fígado, a capacidade dos pulmões para o suspiro e a falta de tomates para meter

Aquela lâmina japonesa nas tripas ou ao menos à moda europeia nos pulsos,

Caralho, uma de champanhe e duas de bordeaux, ainda ninguém se decidiu

A não ser a puta que nos leva todos os sonhos, continuo ao olhar os dedos

Que escrevem isto, como se nos visse a entrar no restaurante Barcarola,

Cada um uma francesinha, qual delas teremos que culpar, o ridículo da vida,

Adormecer-me-ia agora com graça, cor-de-rosa, aquele tom de loucura

Do Conde de Ferreira, quando tudo me alimentava a vontade,

Quando terminará este poema, ridículo, de saudades, de fim, de chouriças para lambões.

 

Turku

 

João Bosco da Silva

 

19.10.2021


terça-feira, 5 de outubro de 2021

 

Fúria e Vinho

 

Há algum tempo que não consigo sentir nada mais do que fúria e vinho,

Sinto que fui lobotomizado, pela dor, pelos comprimidinhos

Para me fazerem berrar com uma doçura de lã no rebanho,

Engraçado que só depois de encontrar Egas Moniz

No meu cérebro raquítico, dei com o picador de gelo supraorbital

E a palavra lá surgiu, costumavam cair, agora tenho que procurá-las

Num sótão escuro e poeirento, de onde todos os brinquedos da minha

Infância foram atirados para o lixo, vinho e raiva, este que há oito

Mil anos é produzido naquela região, tão escuro quanto a tinta

Que agora não uso para meter este lixo no teu cérebro,

Um picador de gelo, no entanto, tenho sonhado com o amigo morto,

Dou-lhe uma palmada no joelho, como se a sua morte fosse a maior partida,

Bem me apanhaste com essa, infelizmente, também não me lembro

Da última vez em que tenha sonhado sem saber que aquilo é tudo

Uma almofada babada, um ressonar ridículo, à espera de uma sede

Absurda, de uma manhã sem sabor, copos vazios para lavar

E uma escova eléctrica mais escura que o carvão, pouco me interessa,

Como sinto a palma a bater num joelho que existe apenas no meu cérebro

Lobotomizado, que não sente nada mais a não ser fúria e vinho tinto,

Não sei, como não compreendo como o cheiro das folhas da figueira

Que aos poucos, tão pequena, se desnuda no súbito outono nórdico,

Me aquecem como uma lareira, sem as brasas furarem os sofás

De poliuretano, uma palavra difícil como a vergonha, por isso raras

Me visitaram, por causa daqueles buraquinhos na minha alma,

Como no sofá, tanto complexo para agora abrir o saco do lixo,

A alma, o podre dos sonhos, o maior segredo de um homem, o seu vazio.

 

05.10.2021

 

Turku

 

João Bosco da Silva

sábado, 2 de outubro de 2021



Castelos e Crepúsculos

 

Daquela varanda víamos o castelo pintado pelo crepúsculo,

Uma amostra de eternidade, uma permanência ilusória,

Éramos jovens e estrangeiros, tu sentavas-te no meu colo

E ao teus lábios pareciam ter o sabor do sol que se despede

Do granito em Junho, sob a tua saia agarrava a certeza

Das tuas nádegas, enquanto me procuravas a fome

E me fazias deslizar para dentro de ti com a  destreza da desgraça,

E ficavas assim, sorvendo vinho, subindo e descendo,

Ao ritmo do Sol, fazendo tempo até ao jantar,

Numa pizzaria qualquer, que me pagarias também,

Depois do táxi da estação ferroviária até àquelas águas-furtadas,

Éramos jovens e eternos, hoje ambos vivemos apenas

No que um perfume familiar nos traz de volta,

Na luz do crepúsculo que ilumina um castelo em ruínas.

 

Turku

 

02.10.2021

 

João Bosco da Silva

 


O Único Último Regresso

 

Há dez anos, regressar ainda era possível, a vida toda por viver,

Quando não sabíamos que estava quase tudo feito nos olhos do destino,

As mulheres dos verões passados, pareciam distantes como as folhas

Vermelhas em Outubro, o inverno uma certeza desconfortável,

Como a evidência dos primeiros cabelos brancos no espelho,

O horizonte era um vasto oceano, o passado uma confortável

Serra, familiar como uma lareira ou a roupa geada no estendal,

Há dez anos éramos tanto, éramos tudo, agora ou somos nada ou vazio.

 

Turku

 

02.10.2021

 

João Bosco da Silva

domingo, 12 de setembro de 2021

 


Emigrante

 

Que fazes aqui ainda, neste hotel da capital, com a pele ainda morena

Do sol que te conhece, que bebes com uma sede de anos,

Essa pele que treme e estranha, estranha sempre, este súbito fim

De Verão nórdico, que nem sempre se concretiza, que fazes ainda,

Regressando como se fosse uma obrigação, a um país ao que deste

A juventude e nunca será teu, onde diluíste a alma até te esqueceres

O que significam as raízes que um dia te apertavam o peito

Até uma seiva chamada melancolia ou saudade te esmagar com doçura,

Regressas sem a graça da juventude, no hotel nenhuma recepcionista

Te acompanhará e adormecerá no teu quarto, ao teu lado, vazio,

Onde a escuridão não é absoluta por causa da luz do ar condicionado,

De manhã deixarás umas chaves anónimas na recepção,

Ninguém te abraçará numa despedida definitiva de quem se deu

Completamente numa noite, partirás de regresso ao limbo onde pertences,

Levando os dias que te levaram a juventude, à morte e ontem

Já foi demasiado tarde quando partir e regressar a casa se tornou

Na mesma coisa, jamais pertencerás a um lugar a não ser ao caminho.

 

Helsínquia

 

04.09.2021

 

João Bosco da Silva

segunda-feira, 6 de setembro de 2021


Aquela Águia Que Morta Voava

 

Fosse a morte sueca, neste mundo banhado pela peste

E o medo, nos desse ela mais oportunidades para confirmarmos

Que a vida faz ainda menos sentido, pouco somos mais do que

A vontade de questionar, quando cessam as perguntas, acabamos,

O nosso corpo é apenas um circo ambulante,

Fosse a morte sueca, e nos permitisse sempre regressar

A casa para morrer, esta vida que nos leva a tantos infernos,

Longínquos, que procuramos como uma terra santa,

A carne doutros corpos que se abre em tormenta e redenção,

Fosse a morte sueca e não iríamos sozinhos para o vazio,

Quando o vazio é estarmos sós, e a nossa busca pela perfeição

É o que vai tornando o mundo mais imperfeito,

Fosse a morte sueca e esperaria um momento mais,

Mas a morte não joga xadrez, é um relâmpago sem regras,

E o medo sempre matou mais que qualquer peste.

 

06.09.2021

 

Turku

 

João Bosco da Silva


domingo, 5 de setembro de 2021

 


Agosto

 

Nada se compara à melancólica luz dourada ao fim da tarde do último dia de Agosto

À beira do rio, silencioso, ecoando ainda na memória a voz dos emigrantes que já partiram

E eu permaneço, pelo menos para já, nas lojas cheias de cadernos e lápis,

Anuncia-se o início que sela o fim de uma liberdade real e quente,

Sempre vivi melhor em Agosto, sempre foi mais fácil apaixonar-me em Agosto,

Talvez porque já o ame, incondicionalmente, apesar do excesso de música pimba,

Das canículas incapacitantes e do meu mau francês, o fim de Agosto era como imaginava

Que a morte fosse, antes de a ver frouxar o aperto daquela mão, nada se compara

À melancólica luz dourada ao fim da tarde do último dia de Agosto à beira de um rio,

Tal como será, quando já todos formos uma partida sem regresso.

 

Cidões

 

31.08.2021

 

João Bosco da Silva

Poder Voltar - Haikus


 

1.

Sob o mar branco

de tranquilidade

todos os infernos.

 

2.

No rio da infância

toca-se

a eternidade.

 

3.

Dentro do rio

passo

como um dia quente.

 

4.

Os pés cresceram

as pedras

ficaram afiadas.

 

5.

Logo foge a cobra

do medo

dos homens.

 

6.

De cachos abertos

a vinha recebe

a doçura do Sol.

 

7.

Sobre o lume

a grelha

aguarda o crepúsculo.

 

8.

No silêncio da distância

os cansaços

que nos esperam.

 

10.

Besouro negro

que procuras

no girassol?

 

11.

À sombra da macieira

apodrecem as maçãs –

não há fome.

 

12.

Mantêm-se altivos

mesmo na canícula

os girassóis.

 

13.

A adega do avô

fresca

como na infância.

 

14.

Que ano esperam

aquelas garrafas

no canto escuro?

 

15.

Peixes e alfaiates

os meus olhos

e a persistência.

 

16.

Corre o rio

e permanece –

folha amarela.

 

17.

Persiste na canícula

o ramo espetado –

pai dorme a sesta.

 

18.

Salvo pela moral

o peixe

que a cobra pescou.

 

19.

Cobra contra peixe

ambos lutam

pela vida.

 

20.

Quase quarenta

à sombra

eu feliz como vinte.

 

21.

À sombra da figueira

amadurecem as uvas

espera a aranha.

 

22.

Só as moscas

se atrevem

no silêncio da canícula.

 

23.

Nos olhos fechados

ao Sol

ainda as papoilas.

 

24.

Na lavanda

espetada na barba

uma pequena aranha.

 

25.

Sabem-me à infância

as amoras temperadas

com o pó dos caminhos.

 

26.

O Sol no seu cabelo

de qual nasce

a luz?

 

27.

Em peregrinação

às fragas da infância

pela canícula.

 

28.

Três vezes neste cruzamento

me extraíram

a seiva da figueira.

 

29.

Que frescura terá

a minha

sombra?

 

30.

Em três corpos escorreram

neste cruzamento

lágrimas de figueira.

 

31.

Quantas formigas

terei pisado

neste passeio bucólico.

 

32.

Compreendem-se melhor

as fragas

em silêncio.

 

33.

Debaixo do carvalho

frescos os sons

da povoação distante.

 

34.

O ar quente

faz tremer a distância –

canícula.

 

35.

Que te atormenta

galo que cantas

na canícula?

 

36.

Duas estrelas

dançarinas –

o sol no seu cabelo.

 

37.

Grilos cantam

cães ladram –

lua laranja.

 

38.

Que alívio não compreender

o ladrar dos cães –

noite de verão.

 

39.

O cuco aproveita

a frescura da manhã

para cantar.

 

40.

Cuco canta

um rádio toca –

manhã de Agosto.

 

41.

Sobre a terra seca

cai um figo

antes de amadurecer.

 

42.

Protegida pelos girassóis

cresce

uma beringela.

 

43.

Ouvir o cuco

dá-me saudades

do negrilho que secou.

 

44.

Quando chegar

a primeira geada

onde cantará o cuco?

 

45.

Na terra onde secaram

dois pessegueiros

crescem quatro oliveiras.

 

46.

Que faria o caçador

se compreendesse

o cantar da rola?

 

47.

Manhã fresca

a rola canta

como a água corre.

 

48.

Grilos cantam

estrelas brilham

gemidos no cruzamento.

 

49.

No estendal abandonado

as molas da roupa

esperam.

 

50.

De manhã as moscas

apressadas

como gente ensonada.

 

51.

Nos olhos perdidos

a aridez

do centro da cidade.

 

52.

Põe-se o Sol

e eu

nela.

 

53.

Apertada num vestido

verde

a minha vontade.

 

54.

Folha de salgueiro

cai sobre o rio –

entardecer.

 

55.

Parece chover

ao entardecer –

alfaiates no rio.

 

56.

No canto dos grilos

ecoa o Sol

que se pôs.

 

57.

Sob a lua laranja

cantam os grilos –

noite quente.

 

58.

Ao longe o candeeiro

da aldeia

quase deserta.

 

59.

“Acaba sempre

o verão” –

cantam os grilos.

 

60.

Numa casa vizinha

alguém mete telhado novo –

manhã de Agosto.

 

61.

Da fraga granítica

brota

o pinheiro bravo.

 

62.

Cultiva distâncias

colhe

solidões.

 

63.

Defecado na Primavera

o excremento

também secou.

 

64.

Lembram-me

amantes perdidas

os montes queimados.

 

65.

Que agradável

o vento

antes da tempestade.

 

66.

Pinheiro tombado

cresceu demasiado

em pouca terra.

 

67.

Na ribeira seca

um mar

de moscas.

 

68.

Levamos nosso corpo

ao lugar onde foi jovem –

ilusão de permanência.

 

69.

Antes do relâmpago

está já

o verão acabado.

 

70.

Aquela nuvem distante

será água

sobre esta fraga.

 

71.

Floresce a flor

do cacto –

tempestade de Setembro.

 

72.

Hoje ninguém

se queixará do pó –

dia de tempestade.

 

73.

Acariciando o gato velho

a água da chuva

vai secando.

 

74.

Será este Outono

o nosso

velho gato?

 

75.

O pai diz:

“Vou plantar nabos” –

choveu.

 

76.

Enquanto o gato se limpa

o sol regressa

depois da tempestade.

 

77.

Se as emigrantes

me quisesses tanto em Agosto

como as moscas em Setembro.

 

78.

Uva a uva

haiku a haiku

moscatel e Yosa Buson.

 

79.

Terra lavrada

depois da chuva –

que perfume antigo.

 

80.

A água que acabou de cair

bebe-a o gato

do balde.

 

81.

Sabendo do Inverno

tomo ao lado das romãs

o sol de Setembro.

 

82.

Sentado sobre a pedra

trazida da ribeira

também eu passo.

 

83.

Nos ramos secos do carrasco

os líquenes

continuam a luta.

 

 

 

Agosto-Setembro 2021

 

Torre de Dona Chama, Cidões, Porto

 

João Bosco da Silva

 REVISITAÇÃO

para o Boschkowski Agora que viveu o poeta pode voltar para trazer-se de volta pelos montes pela floresta para observar os seus passos trouxeram-no de novo ao quarto da infância à cama de rede aos amigos que não morreram às noites intermináveis onde mais do que uma estrela lhe veio trazer o sono O poeta viveu e voltou para respirar por entre os trilhos e as cascatas adivinho do vento e das palavras veio ao seu domínio para tocar folhas e raízes e escrever de volta que tudo estará bem enquanto ele puder aqui vir o poeta volta ao pasto para o piquenique dos elementos. Ricardo Marques