quarta-feira, 20 de maio de 2020


Estranhos Em Espelhos

Quando me olho ao espelho, vejo sempre alguém que perdi,
Um sorriso fossilizado nas circunvoluções mirradas pelas estações,
Reconheço sempre um novo estranho à volta dos olhos,
Uma ruína que se aproxima em dia de tempestade,
Todos os sonhos objectos roubados a uma sombra emprestada,
Os anos querem impor-me novas responsabilidades,
Nunca consegui engolir os últimos espinhos, amei sem saber,
Não quando me sentava miserável à geada em bancos de jardim,
Adolescente como a minha biblioteca de lábios abertos,
Que estranho serei amanhã, que dono me tomará os sonhos de hoje,
Que tenha ao menos vontade, que morda, hoje tem sido uma resignação,
Todos os dias, hoje, sempre, hoje, pouco interessa o que está além do espelho,
Quanto muito uma escova de dentes por abrir, uns comprimidos para dormir,
Nenhuma promessa, parece ter sido tudo consumido pela vontade dos dedos,
Do meu lado direito um hábito que se tornou vazio, uma música que se ouviu
Demasiadas vezes, sempre o mesmo Sol, sempre a mesma luz, nesta pele estranha,
Não sei se tenho mais medo de morrer, se de viver uma vida que já não sou.


Turku

20.05.2020

João Bosco da Silva


“SO YOU WANT TO BE A WRITER?”

São já demasiadas as vezes em que me sento e espero,
Mais uma nuvem cobre o Sol, não suporto sequer o vento,
O verão parece nunca ter sido e ainda mal começou a Primavera,
Um buda que encontrou a eternidade numa pedra vulcânica
Troça do meu olhar no vazio que espera as palavras,
Tornou-se tudo tão inútil quanto ridículo, ou se esquece ou se morre,
No fundo é tudo o mesmo, só a perdição salva, a certeza do Inverno,
Quantas cervejas me custam um verso, quantas recordações
Sacrifiquei por mais um poema quase vazio, também as flores apodrecem,
As aves regressam, todas umas estranhas familiares,
Há lugares que não se sonham, como a Noruega, o teu abraço,
O quiosque da terra com o seu cheiro a jornal e eternidade,
Os dedos tocam incertos a vontade do espírito,
Ninguém acredita que um olhar cansado já viveu,
Por isso tudo continua com as mesmas certezas epicêntricas,
Sento-me e espero, outra vez, nem chove, mas tudo parece cair,
Como pinga a cera de uma vela, fria, como esta época de peste e medo.

Turku

20.05.2020

João Bosco da Silva