sexta-feira, 6 de novembro de 2020

 

Improbabilidade de Celia Cruz

 

Em África decidi que não te podia amar mais, enquanto emborcava Tuskers

E lia sobre uma guerra colonial tão estrangeira para mim, como o amor,

Seguindo por cima do livro os passos lentos da turista alemã,

Em direção ao chuveiro, atravessando um ar espesso como o cantar

Quente dos grilos, enquanto escrevinhava dentro daquele Toyota Hiace,

A contagem decrescente dos dólares e dos xelins, aquela pulseira

Acabou por se partir noutras violências consentidas, permanece espalhada

Numa gaveta do meu quarto de adolescente, à espera de um elástico,

Na companhia das cartas de amor que me escrevias, mi riño, la vida es un carnaval,

Aqueles montes, dizia-te, parecem uns para os lados de Fornos de Ledra,

Encontro sempre algo de familiar nos montes, mesmo que estejam pintados

Com outros verdes, o Sol é o mesmo e o amor esgota-se sempre,

E tinhas razão logo desde o início, no hay que llorar, que la vida es un carnaval,

Y las penas se van cantando, mas eu sempre fui fiel ao silêncio das palavras.

 

 

06.11.2020

 

Turku

 

João Bosco da Silva

 

Encornar pelo Seguro

 

Acordar, às vezes chega, com um remorso trazido em segunda mão de um sonho,

Uma ex-namorada, confrontando-te com um erro de cálculo, podia ter sido,

Mas não tinha sido, desaparecendo numa festa familiar, impossível,

Sem os muros de pedra debaixo de macieiras, onde ficou aquela fome de ruivas,

Os olhos verdes que hoje, só os mesmos quando fecho os meus,

Ou olho uma fotografia perdida, reconheces quem tenho aqui, disse,

No sonho, e ao lado uma mulher mais ou menos da idade dela, quando jovem,

Totalmente desconhecida, alguém que teria fodido com gosto,

Como tantas outras cujos rostos tento reconstruir como um puzzle forçado,

Não, nunca a vi, um rosto como tantos outros que passaram pela juventude,

Uns de joelhos, outros apenas alguém que passou no autocarro,

Aquele remorso reciclado, mas foste tu que me ensinaste a trair,

A foder como vingança, ou para assegurar a honra na vergonha,

O teu paradoxal sorriso inocente, nesses mesmos lábios, que me contavam,

Que tinhas fodido este e depois aquele, e o que mais me doía era a tua sinceridade,

A naturalidade com que me arrancavas as fibras da ilusão, que podia fazer se te amava,

A não ser foder estranhas em casas de banho públicas, só para equilibrar

O peso dos cornos nos teus e manchar os nossos lençóis com o esperma

Que escorria de corpos breves, quando tu não estavas e eu só temia os teus lábios.

 

06.11.2020

 

Turku

 

João Bosco da Silva