quinta-feira, 30 de março de 2023

 

À Espera no Mecânico

 

Timidamente, com a voz cansada dos últimos anos,

Pergunta se lhe querem também comprar os pneus do carro,

Pois sabe, amanhã acaba a validade da minha carta,

O jovem não percebe à primeira, então num esforço

Ainda maior, repete, que depois de amanhã,

Não poderá conduzir mais, quase humilhado,

Um elefante que caminha em direção ao isolamento

Do cemitério, longe da sociedade activa,

Humilhado pela proximidade da inevitabilidade,

Antes desta se concretizar, um fim anunciado,

Ao que o jovem responde que não, não se apercebendo

Que o interesse era ele tornar-se testemunha também,

Daquele fim, daquela data que o afastará um pouco mais da vida.

 

30.03.2023

 

Turku

 

João Bosco da Silva

quarta-feira, 29 de março de 2023

 

Tons de Branco Sujo

 

Aonde me levam as insónias nesta Primavera

Que não se deixa vir, a caminho de sua casa

Na festa da vila no Verão e as calças brancas

De joelhos na terra no Largo da Feira

E num gorgolejo de cerveja e música pimba,

Venho-me sem glória, com uma pressa de matraquilhos,

Este corpo que agora tão estranho àquele

Que dentro do teu, nesta Primavera coberta

Duma insónia fria e branca como o esquecimento.

 

Turku

 

29.03.2023

 

João Bosco da Silva

segunda-feira, 27 de março de 2023

 

Aquele Bolo com um Compal

 

Não sei medir a felicidade plebeia de atravessar aquela ponte

Sobre altura e nada, em direção a casa dela, a mulher mais exótica

Da vila, modelo na Coreia, meia galega, neta da minha vizinha,

Alta como um sonho quase possível, um bolo e um Compal

Que ela pagou num café quase vazio, que interessa saber tocar

Chopin num desafinado piano herdado dum apelido

Menos comum e um antepassado que em vez de caçador

De javalis e bebedor de vinho xistoso, o descobridor dum calhau

Vazio no meio do medo e da incerteza, viver sem medir apelidos,

Peças de música imortais, todos os clássicos que não se leram,

Um bolo e um Compal depois do trabalho da meia galega,

Antes de nos fecharmos naquele quarto alugado às escuras,

Para cá do Marão, desenrolando suspiros e gemidos,

Desvendando espasmos e dilatações com o espanto da juventude,

Até adormecermos ao som de um cantor Pop, longe das ondas

E deste corpo que hoje arrasta a tinta pela página fora,

Como se fosse tempo, tentando apanhar ao menos

Um momento, uma migalha daquele bolo com um Compal.

 

Turku

 

27.03.2023

 

João Bosco da Silva

sábado, 25 de março de 2023

 

Diferentes Métodos de Produção de Espumante

 

Em vez de estar outra vez nisto, devia estar a estudar

Os diferentes métodos de produção de espumante,

Entre o silêncio dos amigos, que só significa uma coisa

E o sincero nojo dos que realmente tem coragem

Para nos dar a sua opinião, o último livro nunca o será,

Entretanto o que está no prelo há dois anos, assim

Continuará até que me esqueça ou aceite o facto

De que realmente não há papel, papel para tanta merda,

Normalmente espera-se que as uvas tenham um nível

Mais baixo de açúcar em comparação com vinho de mesa,

Não sei se o interesse se perdeu porque cada poema

É um pouco mais do mesmo, como cada ano, as estações,

Ou se o acumular dos anos levou o que realmente interessava,

Ouve um cancelamento silencioso ao ritmo do esquecimento,

Agora escrevo, em vez de estudar os diferentes métodos

De produção de espumante, só para não me esquecer,

Eu também, da língua da minha alma e de mim mesmo.

 

25.03.2023

 

Turku

 

João Bosco da Silva

sábado, 11 de março de 2023

 

Morning Glory

 

Minutos antes do toque do meu despertador,

Acordo, lá está ele do outro lado da parede

A gemer como se estivesse a vir-se num buraco negro,

E a alma, ossos e tudo, chupados pela uretra fora,

Como se tocassem as sete trombetas, com esforço,

Ouço um gemido mais baixo, o mundo não acaba em solidão,

Trocam um burburinho dócil, alguém se levanta

E descarrega um litro de glória na sanita,

Bom dia, podia ter dormido mais meia-hora,

Continuar a sonhar com distâncias seguras e glúteos abertos,

Estava quase a acordar num grito engasgado em alívio,

Tive que levar outra vez com o tesão de mijo do vizinho.

 

11.03.2023

 

Turku

 

João Bosco da Silva

segunda-feira, 6 de março de 2023

 

Insustentável Degelo

 

O rio continua congelado, nenhuma primavera

Parece possível, as que foram não serão,

As que serão não estão, o silêncio cobre as recordações

Que os fumos de alheias fogueiras trazem

À distração de um olhar, mais profundo é o rio

Na sua impenetrável consistência de pesadelo

Que se aceita como acordar em mais um dia,

Longe da amargura de todos os amores apodrecidos

Debaixo de macieiras no fim de outono,

Continua congelado o rio e viver tornou-se num mau hábito,

Que por não haver mais nada, se tolera.

 

05/03/2023

 

Turku

 

João Bosco da Silva

 

Manteiga em Pão Quente

 

Depois de engolir a primeira colherada

De sopa de lentilhas, levanta-se da mesa

E diz, o teu esperma ainda me escorre

Pela cona fora, regressa depois à mesa

E barra manteiga numa fatia de pão quente.

 

Turku

 

05/03/2023

 

Turku

 

João Bosco da Silva