sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

 

Back in The Game

 

Tens-me sorrido em todos os sonhos nos quais me visitaste,

Com esse teu sorriso seguro, de quem tem a verdade na mão,

E mesmo assim, vendo a fragilidade da certeza de um amigo, sorri,

Mesmo que o amigo tenha a certeza que seja impossível

Estares ali assim, todo, infinito, eterno, imortal, porque morreste,

Então mais uma vez sorris, nesse teu último sorriso vivo, dentes cheios,

À frente de uma lista de gelados, e todo o meu cansaço te parece

Ridículo, eu que sempre tive medo de viver, que sempre preferi

Enfiar palavras com os dedos no vazio, do que dizer, do que aproximar

Os lábios, do que realmente viver, contudo, eu que não mereço, continuo,

Sem fazer falta, apenas carne e vício, uma vontade de apagar constante,

Um ridículo cujas palavras cada vez mais diluídas, o peso cada vez mais difícil

De encontrar num símbolo ou som, cá estou ainda, porque não posso

Ir em direção ao banco, e levantar-te de volta ao jogo.

 

18/02/22

 

Turku

 

João Bosco da Silva

 

Satakero 3

 

Podia escrever mais uma merda qualquer para ninguém ler,

Mas, tenho na mesa rena seca e uma cerveja aberta,

Na lareira as brasas estão no ponto para a chouriça espanhola,

O corpo está cansado, como há anos, depois de uma tarde

De Sol negativa, montanha sagrada acima e abaixo,

Até os músculos velhos começarem a prometer cãibras

Nos momentos de virar, podia escrever mais uma merda qualquer,

Mas o que tenho de mais profundo à mão, é que, mais vale

Conhecer alguém, só até que a neve comece a descongelar,

É que depois, tudo se revela, uma grande cagada de cão.

 

Pyhätunturi

 

11/02/2022

 

João Bosco da Silva


Isto, Aquilo, o Copo Vazio

 

Acabo de escrever mais um poema e tento enfiar-lhe uma data,

Dois mil e … vinte?... e dois, como pode ser isto, durar tanto,

Nem Cristo viveu tanto, estes anos todos, pior que uma couve,

Nem o raio de uma caldo-verde consigo ser, o chouriço vai aguentando,

Cada vez com menos fome, começou tão bem, a sede cada vez maior,

Não sei se sede, se vontade de ir mais rápido, não interessa,

Mas na verdade, nada interessa, a primavera continua a parecer

Impossível à distância de dois meses, o pinot noir começa a substituir

O aroma de certas mulheres a que não conseguia resistir,

Começa a tornar-se no cheiro que levava nos dedos para casa de madrugada,

Cravo-da-índia, e a tua hesitação no carro da minha mãe no final

De Setembro, como aquela noite à caça de porcos-monteses

No Alandroal, aquela bala que logo passei ao meu padrinho,

As rãs mudas depois da explosão, ao contrário daquelas no norte,

Enquanto deitado numa manta com uma prima afastada,

Eu que falhei ao meu avô também, segurar a caçadeira,

Apontar ao alvo colado à figueira com saliva de cirrótico,

A bala rebentou o coração do porco, o fígado rebentou no meu avô,

Eu espero, um fim qualquer, tantos copos vazios numa vida igual,

Aos poucos, regresso também ao poeta que era, quase quarenta anos

Agora, tenho o reconhecimento no silêncio, no esquecimento,

O Ferlinghetti sentado numa cadeira sorri para mim,

La LLorona do Picasso, chora, como a mãe que perdeu o meu

Melhor amigo, e eu continuo, inútil, empurrando mais um embolo,

Adianto um dia, uma semana, um mês, se calhar dando até uma vida

Que se valeu a pena viver, não isto, não isto, este esquecimento

Antes do inverno se tornar eterno, até os amigos, a estas horas,

Preferem mais um morto, já que enquanto o coração bate,

Não merece honras, cresce e desaparece, isto, aquilo, o copo vazio.

 

18/02/22

 

Turku

 

João Bosco da Silva