segunda-feira, 23 de outubro de 2023

 

Estátuas de Sal

 

Façam fila, façam fila, para a viagem sem convite,

Agora todos poderiam ter ido, se isto ou aquilo,

Quantos beijos que pouco mais que o lábio inferior

Sem pele, tinhas dito, tinhas dito, eu ia,

Mas para ir tomar um café, um copito de vinho,

É sempre preciso um requerimento com dois anos

De antecedência, depois os sonhos isto,

Um acordar babado, com tudo por fazer,

Tudo o que poderia ter sido, uma fome que

Nada sacia, porque é a vontade de sonho

Que a comanda, podia ter ido também,

Se nos tivéssemos encontrado, naquela tarde

No aeroporto em Lisboa, há uns dez anos,

Sei lá, hoje se calhar estaria a beber cerveja

De outra marca e com o mesmo descontentamento,

A mesma vontade decadente de fim,

O mesmo cansaço, se calhar mais palavras

Que este saco de emigra cheio do que trouxe

Ou vou encontrando nos livros que me chegam,

Faltam tomates a tanta gente, mesmo

Que lhes falte um passo, um sacudir o tédio,

Se tivesses dito antes, se fosses fulminada

Por uma praga bíblica ou te transformasses em sal

Ao olhares para trás, amanhã será sempre tarde.

 

23/10/2023

 

Turku

 

João Bosco da Silva

Diatribe e Dionísio

 

Antes de mais, sejam bem-vindos a este circo,

Aqui está o último bufo para acabar de encher

A chouriça ou a revistinha, o engraçadinho

Que ninguém leva a sério, sempre com o caralho

Na boca, o borracholas das férias na terrinha,

O gajo que supostamente salva gente, vidas,

Quem diria, que profissão honrada, bato palmas,

Bate-me mas é uma punheta que com palmas

Não pago nem uma garrafa de vinho,

Aqui está, até se lhe dava uma ou duas,

Vamos ter ao hotel a ver, ecos de acólito

A hóstias roubadas da sacristia, nem o táxi

De regresso, nem a cuecas molhadas daquele

Esperma provinciano, lá dos nortes da europa,

Estou apenas aqui sentado, neste jardim do éden,

Sem ver luz há dias, engolindo a perdição,

Como quem conta os segundos, certo de que

O fim é a certeza absoluta de tudo,

O ridículo é uma aberração do nada que já não temo,

Quem não me enche o copo e o ego que vá regar

Os seus desejos com mijo de anjos, temos uma lista

De dois anos, provavelmente tudo caberá no cu,

Se calhar até nos deixarão cheiram um pentelhinho

Ou dois, com sorte do cu, é que nunca tivemos

Uma cara que desse vontade às senhoras

De desembainhar as beiças, com a idade é isto,

O ridículo das palavras, mas essas não, isso não,

Ruim como o vinho que me consola, tomaram

Os aldeões como tu, não é, não, tens que te dar mais,

Disseram-me isto num fóssil, tantas vidas vivi,

Acrescentou-me numa mensagem

Décadas depois de qualquer possibilidade

De arreganhar a beiça para estes lados,

Abro mais uma lata de cerveja finlandesa

Para me ajudar a engolir a bílis de tanto vinho,

Quem se lembra do Anthony Bourdain

Num hotel de cinco estrelas na Alsácia,

Provavelmente com o estomago cheio

De um riesling gran-cru e a testa cheia de cornos

Italianos, com uma vontade infernal

De Pho para o salvar de um momento,

O momento crucial, último e definitivo,

O último jornalista gonzo na verdade,

Posso ter provado a primeira ostra com o Hemingway,

Mas voltar a provar algo outra vez, pela primeira

Vez, só aquela ostra da sua infância,

Há uma coisa que não compreendem,

É que a língua com que crio estas merdas,

Poemas, ou aborrecimentos, é a língua que uso

Apenas para pensar, e ler cinco por cento

Do que leio por dia, agora agarrem num rolo

De papel higiénico e engulam-no,

Pode ser que os versos vos saiam mais limpos,

Oito anos depois, contudo, regressarei ao país

Onde realmente queria ter nascido,

Teria sido um plantador de arroz, ou no máximo

Um gajo de fato a dormir no metro,

Depois de engordar uma empresa como se

Estivesse a lutar pela honra do meu senhor,

Prefiro o plantador de arroz, ou o gajo enforcado

Naquela floresta perto do Monte Fuji,

Não na Alsácia, que sonho, morrer aos sessenta,

Depois de uma vida daquelas, chegar aos

Quase quarenta e olhar para trás,

Ver nada, olhar para o futuro e cansaço,

Ter a certeza que se leva uma vida de adiamento,

Que não se chegará a lado nenhum,

Porque terão sempre dois anos já de

Merda para engolir, e falta coragem, falta submissão,

Pele grossa nos joelhos para ajoelhar e pedir,

Que se fodam todos, também irão e serão

Tão esquecidos como a lata quase vazia

Que me acompanha, ter estado, ter estado,

É e será sempre mais certo do que ter sido.

 

23/10/2023

 

Turku

 

João Bosco da Silva

domingo, 15 de outubro de 2023

 


Ecos do Que Não Regressa

 

Debaixo do carrasco ao lado da capela silenciosa,

Assisto à cadência lenta do dia demasiado quente

Para Outubro, em baixo na estrada, vai passando

Um ou outro carro, a estas horas ainda se trabalha,

Alguém corta metal, talvez na adega extinta da vila,

Dois cavalos pastam num mesmo lameiro,

Afastados um do outro, tudo verde, como a primavera

Ou um amor antigo que se revisita antes do expirar

Completo da juventude ou no lusco-fusco,

Lentamente o tom da luz que tudo cobre

Vai-se alterando, também há beleza no cansaço,

Aquela última mão de sol por trás dos montes,

Pintando tudo de nostalgia, há sempre algures

Um rádio bem alto para afugentar os vazios

Que tomaram bairro após bairro, como hordas

Mongóis ou enxames bíblicos, a praga lenta

Da desertificação, da qual também eu sou culpado,

Mas mesmo aqui, onde os pássaros

E os rumores das folhas cantam a simplicidade

De um dia quente em paz, sinto uma inexorável

Vontade de fuga e é a essa distância que me sinto pertencer,

As raízes em silêncio subterrâneo, cumprem

A sua fundamental função, longe do fruto.

 

02/10/2023

 

Torre de Dona Chama

 

João Bosco da Silva

 


A estas Horas

 

A estas horas os amores da juventude silenciosos

Como as ruas que os testemunharam, a vida aconteceu

E o pó dos anos endureceu numa camada lisa e estéril

De esquecimento, estes dedos agora não chegam a ninguém

E encontram palavras apenas ao ritmo da queda dos marmelos,

Que depois rolam pelo caminho da entrada abaixo,

Até baterem no portão de metal, como mais um nome,

Que sem se saber, se esqueceu para sempre, o próprio

Para alguém que contempla a mesma lua com um tédio

Sem pingo de nostalgia, até os sonhos, mesmos no sentido,

São compostos de uma matéria diferente, as horas passam

Como dias de grande responsabilidade, as mãos,

As mesmas mãos que tocaram a eternidade no fundo dos outros,

Nada mais parece importante ou eterno, a não ser

A evidência das poucas coisas definitivas e mesmo essas,

Se ignoram como o peso de um céu estralado numa noite de verão.

 

30/09/2023

 

Torre de Dona Chama

 

João Bosco da Silva

 


Fermentação

 

É a hora de almoço, nas ruas da vila não se ouvem

As vozes dos adolescentes de outros anos, a escola fechou,

No lagar o vinho fermenta, ouvem-se talheres cansados

Bater nos pratos desencantados, com sorte um rádio

Demasiado alto de um vizinho sobrevivente,

A juventude tem cabelos brancos e senta-se à sombra,

Contudo, o vinho no lagar fermenta, num rumor ancestral,

Um eterno ciclo, mas a escola fechou, há um vazio

De quem espera apenas o amarelecer das folhas,

Ecos de juventudes longínquas, há demasiado espaço

No ar para o silêncio e o esquecimento.

 

29/09/2023

 

Torre de Dona Chama

 

João Bosco da Silva