quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

“Sinais de Fogo”

 

Depois de enterrarem o putrefacto cão assassinado,

Foderam sobre aquela mesma terra revolta,

Sem outra pinga de amor além do esperma

Vertido que a criada Maria cobrira de terra e rezas,

A morte como a vida, sacode-se com a mesma facilidade,

Merda e pó, a mesma massa universal,

Fonte de todos os medos e desejos,

Dependendo apenas da delicadeza de cada um.

 

28.12.2022

 

Turku

 

João Bosco da Silva

 

 


quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

 

Primeiros amores e Música Pimba

 

Escrevi há umas semanas uma ideia para um poema num papel,

Encontrei-o hoje, surgiu-me ao ouvir uma música da Katie Perry,

Que me levou a uma música da Micaela e daí a uma tarde

No ciclo, na qual a paixão da quarta-classe junto à rede

Perto do cemitério da vila, me disse num furo, que eu mudo

De amor como quem muda de camisa, porque andava

Apaixonado por uma miúda do 5º ano chamada Alice,

Nós no 6º ano, novamente na mesma turma,

Hoje encontrei este papel num bolso duma camisa,

Pareceu-me uma ideia ridícula, mas todos os poemas o são,

Também a vida o é, um aglomerado grotesco de ridículos,

Empurrando-nos até ao hoje e ao agora, somos essencialmente

As mentiras que contamos tão alto que ecoam nos outros

E se entranham nas nossas certezas, tanto que no 7º ano,

De facto, mudei de camisa, como voltei a mudar

Em cada um dos anos que se seguiram, mas havia uma constante,

Uma nódoa que persistia na pele e à qual aprendi a chamar de amizade.

 

21.12.2022

 

Turku

 

João Bosco da Silva

domingo, 4 de dezembro de 2022

 

Visita à Biblioteca de Adriano

 

“é terrivelmente difícil amar estátuas em ruínas”

Tatiana Faia

 

à Tatiana,

 

É difícil compreender o número de catástrofes

Que acumulamos ao longo da vida,

A persistente ruína de carne em que nos tornamos,

Após incontáveis apocalipses pessoais,

Terminam amores tão sólidos como as colunas

De um templo, que um agricultor usou

Para proteger a vinha do ar salgado,

A fé salta de ilusão em ilusão,

Dependendo da crença em moda ou medo,

Com sorte, o nome de uma rua permanece,

Imutável como um nome próprio,

Irreconhecível para quem a baptizou,

Levamos ainda o colapso de todas as civilizações

E isso sente-se na saudade pelo que nunca

Vivemos na carne e sentimos apenas no sangue

O silêncio que o tempo impôs às pedras,

Dura mais um momento que a vontade de eternidade,

A visita numa tarde quente à biblioteca em ruínas,

Que distante revisitarás, no livro da mesma poeta.

 

04.12.2022

 

Turku

 

João Bosco da Silva

 

Arrefecimento

 

“habituámos-nos a que

nos esqueçam”

Yannis Ritsos

 

Quando a fome te despe os sentidos e suavemente

As primeiras geadas te visitam a solidão,

É porque chegou o tempo das fogueiras e dos segredos pagãos,

Despertam lentamente os sonhos antigos,

Como quem acorda com a boca pintada pelo vinho

Que um avô morto pisou, friamente cintilam as estrelas

Como o mais belo copo de cristal vazio,

Numa manhã de sede maior, em que o despertador,

A faca do coveiro que abre caminho ao sangue,

Do coração do porco cevado à bacia de plástico,

Chega o inverno que nunca esqueceste e o verão,

Que ainda ressoa na pele, mora agora num canto esquecido

Na companhia dos mitos da infância e dos amores frios.

 

Turku

 

15/11-04/12/2022

 

João Bosco da Silva

segunda-feira, 14 de novembro de 2022

 


Haikus Malteses

 

Na figueira maltesa

um pisco canta

o fim do verão.

 

Rapidamente se esquece

o que milénios de pó

escondem.

 

À beira do mar

todos os amores

a espuma das ondas.

 

A caminho de África

três patos descansam

ao lado dos turistas.

 

Cabem nas pupilas

as falésias gigantes

o mar possível.

 

Longe destes olhos

que fechados

tocam o infinito.

 

O mar nada revela

ondula um momento –

eternidade para a carne.

 

Prende-se o mar

com as mesmas amarras

que o amor.

 

Onda contra a onda

que regressa –

uma mosca observa.

 

Num copo de Chardonnay

põe-se

o Sol.

 

O olhar de Calypso

na praia –

o verão parte.

 

Sobre a merda das pombas

pousa graciosamente

uma borboleta.

 

Vinda do mar

a tempestade –

aves silenciosas.

 

Sobre o fresco cagalhão

ejacular –

manhã de Novembro.

 

No caranguejo morto

a sombra

de um pequeno peixe.

 

Caranguejo morto

ao sol

perde o verde.

 

Pequeno camarão transparente

lutando pela vida

como um elefante.

 

As ondas brilham

ao sol –

mais um barco passou.

 

São alimento

a morte e o sol –

consumindo vida a vida.

 

Puxa a linha

o pescador –

outros regressam.

 

O sol e o mar

nas salinas abandonadas

continuam o trabalho.

 

Por trás

do farol apagado

põe-se o Sol

 

Malta, Novembro 2022

sábado, 12 de novembro de 2022

 

Engolir em Seco

 

Quem serás amanhã, quando acordares, meio confuso,

Completamente desidratado, entre dois morros

E a promessa do infinito reflectida numa água que espelhou

A visita de demasiadas civilizações extintas,

Serás tu uma sede, o desejo que não se acende nos olhos alheios

Ao verem o reflexo prateado da verdade numas têmporas

Distantes da frescura de uma vontade outrora indomável,

Terás talvez o eco da doçura deste dia, tornado no vinagre

Daquela esponja oferecida a Cristo, amanhã o crepúsculo dourado

Será o ferro quente vertido na tua boca ressequida

De todas as sedes e pecados, as conas beiçudas que relembras

Enquanto a maresia te humedece as páginas na companhia

De um vinho tinto raro como ruim e o fumo de tabaco em segunda mão,

Expirado pelos pulmões das espanholas da mesa ao lado.

 

Xlendi

 

02.11.2022

 

João Bosco da Silva

 

Antes da Queda a Fractura

 

Chove no farol

o mar persiste

na eternidade.

 

Nos morangos silvestres

a maresia

da manhã.

 

De manhã

na palha húmida

o teu cheiro.

 

Julho a meio

floresce

a hortelã.

 

Pensará em mim

antes de adormecer –

cuco canta.

 

Adormecer embalado

pelo despertar

da cidade.

 

Na vida

como em tudo

sempre um amador.

 

Entre grilos e gaivotas

prefiro o silêncio

dos trevos.

 

Terra revolta

à beira do caminho –

batatas novas.

 

Secam algumas

flores de trevo –

o outono não demora.

 

Oito toalhas de banho

lavadas –

finalmente silencio.

 

Kaskinen-Turku, Julho 2022

 

Xlendi

 

Esquecer tudo e nadar em direcção ao pôr-do-sol,

Tocar a luz num último momento, agarrar o futuro

Na última despedida do crepúsculo, ser a água

E as rochas nervosas que a contêm, perder tudo

No fim de contas, num salto inesperado,

Bem-intencionado como o destino, Novembro também

Chegou aos patos, passarão o Natal em África,

Regressarão quando um crepúsculo volte a valer a pena.

 

Xlendi

 

02.11.2022

 

João Bosco da Silva

 

“by the sea”

 

Um destino incompleto que ficou no buraco de um dente de deus,

Um pedaço de lama do pó de estrelas sem sopro, um desperdício de vida,

A revolução consciente do universo, o reflexo sorridente num buraco negro,

Um grão de tudo que acabou num nada sem escolha, inconsciente

Ao menos, sem dor além daquela que a mãe suportou,

Além da minha cáustica presença, o ridículo espasmo animal,

Numa espiral nauseante infinitamente vazia, tudo o que poderá ser,

Será, fosse ao alcance destes olhos humanos a eternidade,

Apaga-se o mesmo sol de sempre, além do mar, levando esta carta

Ao filho que nunca.

Xlendi

 

02.11.2022

 

João Bosco da Silva

 

No Tempo em que se ia Cagar à Coelheira

 

Em casa da minha avó, cagava-se no baixo onde todos os coelhos

Com os olhos vermelhos por causa da escuridão,

Era igual, cozidos ou refogados, naqueles pratos de vidro

Com bolhinhas de um ar aprisionado doutros tempos,

Devem ter-se partido todos ao longo dos anos,

Aquele gosto a rato ou traves que apodrecem, aquela carne seca,

O molho escuro, coitado do coelhinho, tantos ossinhos,

Seguravam-se pelas patas traseiras e passava-se uma mão rápida

Pela nuca abaixo, um estremecer e muito bem meu filho,

Depois com as calças todas cagadas e a caminhada da vergonha

Da coelheira até casa, pela lama da rua fora, seu porco

Que cagaste no cansaço de uma mãe farta de gelar os dedos

No tanque, a lavar miniaturas de gente que não foi chamada

A este mundo por vontade, só desejo, cego, sardinhas assadas

E vinho verde, cagão, e o gosto pelo coelho a desaparecer,

Quando até gato bravo ia com gosto, a vergonha a temperar

Com nojo aquela carne, décadas mais tarde, em Malta

Uma tentativa de que se calhar, já passou, mas logo depois

Da primeira garfada, um garoto com o cu sujo ao léu,

Pelo lodo abaixo, a caminhar pela aldeia fora,

Em direção ao silêncio redentor de uma porta fechada.

 

Xlendi

 

02.11.2022

 

João Bosco da Silva

segunda-feira, 31 de outubro de 2022

 

Convalescença

 

Não tenho nada novo com o que sujar as páginas em branco,

Nada do que tentei salvar, valeu realmente a pena,

Foi tudo um exercício no ridículo, afinal a lição mais útil

É aquela que ensina a abrir a mão de tudo,

A que treina os olhos a verem o passar do tempo,

Sempre estiveste mais morto do que vivo, não te apegues,

Goza sem ilusões de eternidade, não vale sequer a pena

Tocar na beleza da efemeridade, é o que é,

Aceita os cabelos brancos como a juventude que ainda

Te abre as pernas, se contares todos os crepúsculos,

Será agora mais fácil localizar a que distância

Foi o primeiro mergulho sem engolir água,

Passaste metade da vida um niilista angustiado

Com o vazio das mãos, agora que a angústia rebentou

Como um balão, sentes-te um iluminado, olhando adolescentes

Ignorantes de que dez anos não são nada e levam tudo,

Uma guerra pode levar todas as certezas e redes de capoeira,

Tudo é certo como o sonho que mal lembras ao acordar,

Deixa-te levar, não tentes, o pior de tudo é tentar.

 

Turku

 

26.06.2022

 

João Bosco da Silva

terça-feira, 25 de outubro de 2022

Borralho 8

 

Quem sou eu agora, para aquele garoto que se sentava

A cavalo do pastor-alemão da passadora galega viúva,

Na cozinha do fumeiro, enquanto as chouriças pingavam

Uma gordura laranja na alma, o meu sonho da altura

Era ter um fato branco como o Don Johnson no Miami Vice,

Garoto realista não sonhava sequer com um Ferrari Testarossa,

Será a viúva viva ainda, com a pastora que julgou que o busto

De Jesus Cristo sob o papel de embrulho era um cão, o cão era León,

Tinha morrido como a infância, e julgou ser sacrilégio o engano,

Quando todos nos rimos das cadenas de adolescente

Presas ao pescoço longínquo do encantador de pastores-alemães,

O ridículo das modas que regressam décadas depois,

Tornando outros adolescentes nas incertezas que me atormentavam,

A frescura será sempre a água gelada daquele cano

Ao pé daquelas ameixeiras em Pontebarxas, a inocência também.

 

25.10.2022

 

Turku

 

João Bosco da Silva


 

Borralho 7

 

Enquanto caminhava até ao centro da cidade e sentia o inverno

E a morte aproximarem-se com cuidados de folhas caídas,

Magicava um verso, como há décadas olhando a luz verde

De um boneco num semáforo na Avenida dos Aliados,

A companhia mais fiel será sempre a página em branco,

Mesmo em madrugadas precocemente geladas,

Quando todos os amores e abusos consentidos,

Já nos esqueceram há uma amante e dois filhos atrás,

Conseguimos encontrar cada um, nos piores e melhores

Momentos, podemos alegoricamente confessar os piores pecados,

Revelar os desejos impossíveis à luz da quantidade de prata

Nas têmporas, a página em branco, do tamanho de todas

As madrugadas possíveis, capaz de aguentar o vazio

De todas a garrafas e das mãos que com elas se sentem cheias,

Esta cidade que em qualquer estação me traz o fogo aos olhos,

Mesmo com a decadência deste cemitério de inocências,

Este corpo aproximando-se da ignorância maior de

Quatro décadas, os autocarros partem e as janelas ficam

Ainda numa curiosidade fresca e ruiva, esta página

Em branco, estas pernas que caminham ao mesmo ritmo

Dos dedos, na madrugada, agarrados a um copo, tacteando

Letras, como quem aos poucos envenena a pureza com a verdade,

Um verso, quem tem uma página em branco, nunca estará só,

Nem numa cidade onde os anos tornaram o corpo invisível.

 

25.10.2022

 

Turku

 

João Bosco da Silva

terça-feira, 11 de outubro de 2022

 

Borralho VI

 

Só podemos realmente digerir o que mamamos

Há uns 6000 mil anos para cá, parece a história da minha vida,

Incontáveis caganeiras, por uma fome sem enzimas,

Um turno da noite numa folga, apanhar um táxi no hospital

Partir o telemóvel contra um poste numa distração focada,

Cona, que mais, ir ao encontro de mais um doce cataclismo,

O culpado, sempre o mesmo, este estômago alojado

Entre a gaita e os tomates, pai da imaginação insone

Das manhãs que puxam insones jactos contrariados contra a sanita,

Deixar na cama, imensos sacos murchos sem leite,

Para ir mamar na persistente firmeza de uma nova ilusão,

Deixar no taxista a certeza de uma taxa por um primitivo

Prazer roubado a sinais de fogo antes de aprender

O que estava realmente escrito nas rugosidades do anel,

Já frio, antes do coalhar do silêncio nas fibras do que isto move.

 

11.10.2022

 

Turku

 

João Bosco da Silva

 

Borralho V

 

No quarto ao lado, das duas uma, ou alguém se masturba,

Ao mesmo ritmo do toque das teclas, ou alguém me odeia e dorme,

A porta não se tranca porque o lençol seca, salpicado com esperma

Incontáveis vezes, só não se trocou o sofá por desconhecimento

Da verdadeira variedade genética entranhada no sofrimento

Das fibras, maltratadas por copos de vinho trémulos e pepitas

De chocolate, espalhadas como merda, iluminadas apenas

Por um filme de Pasolini em fevereiro, e um gajo, passada

Quase uma década, continua a esfarrapar-se todo,

Por caralhos que se esquecem da cor dos olhos logo que

Se deixam embalar pela doçura inelutável da eternidade,

Aquele gajo tentou, arfando, aquele último aperto para nada,

Este verso que se desembrulha e gostaria de ser sublime

E a vida impossível dos que a organização do caos

Tornou num destino trágico, apenas alguém se move

Na cama do quarto ao lado, a saturação dos dedos,

Inconsistente com o grau de desespero de quem espera

Um verdadeiro apocalipse que o torne o anjo anunciado

Há tantos anos atrás, quando ainda havia uma luz no cabelo

Além da prata da inevitabilidade, mas ao menos isso…

 

Turku

 

11.10.2022

 

João Bosco da Silva

 

Borralho 4

 

O mais importante nesta vida é a possibilidade do silêncio,

O silêncio consciente, ouvir a rugosidade da parede nos olhos,

Não o silêncio de acordar porque alguém abriu uma porta,

Ou a carta caiu no chão, ou deixaram de nos escrever

E compensam as ausências com flores que se tornam

Plásticas e o sol arranca-lhes a cor para relembrar o esquecimento,

Isto, estar aqui às duas e meia da manhã, nada mais artificial,

No entanto, amanhecem as madrugadas na procura

Dos meus dedos por pepitas de ouro ou merda,

Uma perdição no plano cartesiano, o infinito mais próximo

Dos anos noventa do que amanhã, fazer crer que o medo

Dos cães nos dias de festa era dos foguetes e não do ridículo

Do nosso mau gosto civilizado, será o universo simétrico,

Terá um centro, uma ressaca de língua pintada,

A sombra de uma figueira onde desejar uma morte perfeita,

O mais importante nesta vida é este silêncio de dedos

Que criam nada, um caos lógico, essencial, como a ausência

Absoluta num momento do tamanho da eternidade.

 

Turku

 

11.10.2022

 

João Bosco da Silva

 

Borralho 3

 

Cabernet Franc e o silêncio defunto de todas as amantes,

Hoje umas velhas, cada uma um cabelo branco, uma ruga,

Um evitar de espelho, um filho que ancorou a resignação,

Outro que afundou o que restava da juventude,

Eu acho que vivo para ser memória, um arrependimento

Que hoje nunca, um terrorista sem-abrigo confortável,

Com um trabalho essencial que nem pandemias param,

O fumo que curou o fumeiro hoje apenas nas paredes

Do que foi a própria pocilga da porca que comia

Os gatinhos recém-nascidos, oferecidos numa crueldade

Inocente, a do pior tipo que nem deus julga, engolidos

Entre merda e batatas que tinham ficado esquecidas,

Cacarejam as galinhas enquanto Rimbaud eleva a pena

De um poema no reflexo das Ardenas num buraco negro,

Eternamente, como o arrependimento, o bochecho

Oxigenado num exagero pouco definido, a eternidade,

O azul que se visita às escondidas, num pequeno-almoço

De ostras e o Hemingway a explicar ao lado, também,

O sabor de uma pêra e a morte que água de couves cozidas

Antes de um corno se enfiar na continuidade da carne,

Tudo isto é estrangeiro como os órgãos que nos levam

Ao momento que nos permite a leitura de qualquer

Movimento peristáltico, o nariz sangra contra o papel-higiénico,

O Cabernet Franc vai-se engolindo enquanto não se engasga

O tempo na sorte ou a falta dela, certo é o outono.

 

Turku

 

11.10.2022

 

João Bosco da Silva

sábado, 8 de outubro de 2022

 

Borralho II

 

Bastava um canto vazio num bairro plantado num luar de Agosto,

A ideia do amadurecer das romãs antes do Inverno, o meu esperma

Que te humedecia as cuecas numa tarde ainda quente de chuva,

Abrigados do desencanto que o futuro sempre reserva,

O amor era pouco mais que a eternidade, um infinito em forma de açúcar

Derramado numa mesa de café da província, esquecer tudo

Por uma vontade maior que qualquer fome, bastava um corpo

No outro, mas o inverno consegue ser tão longo e frio,

E os anos oxidam até o brilho das estrelas, a verdade, quando o caudal

Do rio agoniza na canícula, mostra-se como os sacos com ossinhos

Dos cães e gatos que foram lançados da ponte romana,

Então basta uma palavra para a bílis se derramar na remela fresca,

Fode-se numa pressa de carne que descongela no saco da mercearia,

Só porque em casa não há um canto que não tresande ao que trazia

O luar às noites de geada e sabor ao vinho já vinagre,

Quantas vezes se repete a mesma história antes do cansaço

Nos impor uma responsabilidade do tamanho da morte.

 

Turku

 

08.10.2022

 

João Bosco da Silva

 

Borralho

 

Era fácil, engolia-se a escuridão e o vazio dos dias,

Olhavam-se as paredes com força suficiente para lhes destilar

Da humidade outros significados, acreditava-se ainda

Que era possível sair-se do tempo enquanto se batia um verso,

Tornava-se a realidade palpável, mesmo que apenas no passado,

Traziam-se os dias quentes de volta, o cheiro a cona aos dedos,

Enquanto na cama ressonava o cansaço dos lábios nos outros,

A poesia fazia sentido, os dedos deixavam-se levar por um tremor

Embalado por uma harmonia quase divina, era fácil,

Bastava um copo cheio da fase que fosse, no fim o resultado

O mesmo, mas ao menos um alívio arrancado da melancolia

Eterna do cair de uma folha, na sua leveza a felicidade oxidada,

Agora isto, não esperar nada das palavras, atirar versos

De barro à parede a ver se a luz se acende e a noite longa

Como um inverno sem vinho, morre-se tantas vezes

E todas as palavras deste mundo, não tocam sequer a eternidade.

 

Turku

 

08.10.2022

 

João Bosco da Silva

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

 


As andorinhas de Dubrovnik – Haikus

 

 

Ser um estranho

entre paredes

tão familiares.

 

Lavanda nas tendas –

longe o jardim

de minha mãe.

 

O destino

de todos os desencontros

aqui também.

 

Regressar de onde

nunca

se partiu.

 

Três vezes tocado

por um sol estrangeiro

de avelã.

 

O teu sorriso

as andorinhas de Dubrovnik

ao pôr do sol.

 

Setembro 2022, Dubrovnik

 


Leveza

 

Às vezes leio coisas, que me sabem a um copo com gelo,

Só isso, aquele ar frio, entre os cubos,

A gente gosta de não sujar os dentes,

Eu prefiro beber a coca-cola pela garrafa,

Sentir o vidro fresco e as bolhas subir ao nariz,

Como quando tinha seis anos e ia visitar

O meu pai ao posto da guarda-fiscal

E o mundo era do tamanho do desconhecido.

 

Dubrovnik

 

24/09/2022

 

João Bosco da Silva

 


Tempestade na Cidade Velha

 

Desabava a sede toda nas pedras polidas da cidade velha,

As escadas jesuítas pela primeira vez vazias, a americana

Ao meu lado, de pés molhados como tudo,

Perguntava-me se não queria uma foto lá,

Digo-lhe que não como um adolescente,

Nova Iorque tão longe e isto tudo tão estrangeiro

Como a juventude, tão evidente quanto a linha

Do seu maxilar polaco, inglês, treinado por uma língua cosmopolita,

Eu um rústico provinciano de um império arruinado,

Lado a lado os dois tão distantes, debaixo do tolde de um restaurante

Fechado, esperando um momento certo ou que a chuva pare.

 

Dubrovnik

 

26/09/2022

 

João Bosco da Silva

terça-feira, 20 de setembro de 2022

 

Regresso ao Fim do Verão

 

Nem sequer me lembro da última vez em que te vi,

Sei que foi também a última em que fodemos,

Acho que terminava o verão e o vento da serra

Estava fresco, os grilos quase todos em silêncio,

Testemunhas que já esqueciam as canículas que secaram

O restolho e amadureceram as uvas, trazias uma casaca

De ganga azul, que logo tiraste mal entraste no carro

E te sentaste no banco ao lado, era sempre assim,

Mesmo que acabássemos nos bancos traseiros,

Passando lenços de papel no arrependimento

Ainda quente de um sufoco necessário, que logo atirávamos

Nas margens da noite, um de cada janela,

Mensagens na perdição para o esquecimento,

Passaram então quinze anos, aproxima-se esse fim de verão

E dou-me conta de que, afinal, ainda me lembro

Bem da última vez em que te vi.

 

24/25-08-2022

 

Ar-Torre de Dona Chama

 

João Bosco da Silva

segunda-feira, 19 de setembro de 2022


 

Bagos de Bastardo - Haikus

 

 

Nas folhas da videira

o reflexo da canícula –

silêncio no poço.

 

Com esta mão partida

ao que soarão os grilos

dos meus versos?


À volta da ermida

os toalhetes

dos encontros furtivos.

 

Quase impercetivelmente

a leve brisa e o tempo

arredondam as fragas de granito.

 

Arredondadas pelo tempo

e a leve brisa

as fragas de granito.

 

Há mais vento

quando passo

por choupos.

 

Quando passo

por choupos

há mais vento.

 

Gosto de me sentar

no silêncio do granito

ao vento.

 

Ah o som do vento

no granito

esculpido por milénios.

 

Como um beijo

de despedida

último sol de Agosto.

 

Nas silvas

do dólmen

a pena dum corvo.

 

Que rápido secaram

as amoras

dos caminhos.

 

Em cima da fraga

espero a tempestade –

vento de Setembro.

 

Chegará a tempestade

que o vento de Setembro

anuncia?

 

Semeadas de vazio

as casas onde

a ruína cresce.

 

Na muda presença

é onde habita

o maior silêncio.

 

Branco ainda

este sol

de Setembro.

 

Nas folhas da couve

brilham

refrescantes pérolas.

 

Bastou uma noite

para terminar o desassossego –

palha molhada.

 

Um banquete para pegas

e javalis

a vinha do meu avô.

 

Setembro –

do mosto

apenas uma memória.

 

Logo abraçam

as silvas

a fertilidade abandonada.

 

Onde crescem agora silvas

batiam-se

por um marco tombado.

 

Vinhas perdidas

lapides tombadas

eis o legado.

 

No meio do caminho

para a vinha perdida

cresce a videira brava.

 

Uvas da vinha velha

amoras dos caminhos

pequeno-almoço do poeta.

 

Na sua breve vida

o que teme

a borboleta?

 

À beira do rio

sentado

só eu passo.

 

Pequenas bolhas

o rasto do caminho

da lontra.

 

Açafrão do prado

no caminho –

aproxima-se chuva.

 

Nos bagos do bastardo

a doçura

das tuas mamas.

 

Setembro

regressam as moscas

do inferno.

 

Tarde de Setembro –

do que se despedem

os ramos da oliveira?

 

 

 

Agosto-Setembro 2022

 

Torre de Dona Chama-Cidões-Sabrosa

 

João Bosco da Silva