quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

 

Bocanegra

 

Como a orelha do touro que matou Vicente Gerones,

Esquecida, embrulhada num lenço numa gaveta de um hotel,

Na companhia de beatas, as nossas vidas que cessam,

Como um espectáculo trágico, fecha-se o corpo noutra caixa de madeira,

Enquanto flores apodrecem e velas se extinguem à medida que mais alguém

Nos esquece, o comboio parte e a festa continua.

 

Turku

 

26.01.2021

 

João Bosco da Silva

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

 

Depois das Cinco

 

Chegar a casa e merendar, leite achocolatado, uma sandes de fiambre e queijo,

Não havia intolerâncias, o sol punha-se na janela, lentamente, a eternidade

Além das cortinas que a mãe tricotou, ouviam-se os garotos que esperavam

Os autocarros que os levariam às respectivas aldeias, que mais tarde se acendiam

Nos montes do horizonte escuro, amanhã seria um dia certo, custava a geada,

As primeiras horas de casaco e luvas, mas havia sol nos intervalos,

Estávamos inteiros, ainda longe de nos tornarmos nos homens

Que o destino faria de nós, a geada onde o Sol não chegava, permanecia

Por várias semanas, esperando a primavera, que chegaria sempre,

Mais um dia acabava, caminhava-se para casa antes de cair uma nova geada,

Um subia pelo adro, outro descia pela rua até ao fim do bairro,

Até amanhã, certos como a vida, o sangue jovem e imortal que tínhamos,

Sem imaginar primaveras impossíveis, que não chegariam a todos,

Sem pensar em cemitérios onde erva nova crescerá, porque sempre cresceu.

 

Turku

 

22.01.2021

 

João Bosco da Silva

quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

 


“Knights of Cydonia”

 

Dizem que vai passar, mas um buraco negro não passa,

Tudo passa por um buraco negro e fica a desaparecer

Pela eternidade fora, basta entrar no horizonte de eventos,

Um passo, um segundo infinito, entre o universo e o vazio,

Todos os momentos são agora tristes, aqueles sorrisos,

Que a luz levou à fome de uma massividade escura,

Quantas das estrelas daquelas primaveras já defuntas,

O nosso cérebro um holograma vazio de tudo o que foi,

Um eco da nossa passagem nesta realidade cega,

Injusta nas nossas expectativas ruminantes, vai passar,

Mas apenas o tempo passa e nós que cada vez mais,

Com essa passagem, um elástico incerto que se distende,

Dizem que vai passar, mas olho o céu nocturno e apenas

As nuvens se revelam, encobrindo infinitos e amanheceres.

 

13.01.2021

 

Turku

 

João Bosco da Silva

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

 


A Evidência da Inelutabilidade

 

O relógio caminha para as quatro da manhã e exausto,

Pálido como o pior Inverno, tento resgatar-te do vazio,

Um poema de cada vez, e a cada palavra sinto a dor

De quem se afasta a cada braçada em direção à salvação,

Desculpa não ter conseguido encontrar o génio que sonhamos,

Pensei que por esta altura já seria um necromante treinado,

Mas acabei por me tornar apenas numa carpideira sem mestria,

Contudo, enquanto o ácido que me corrói o estômago,

Com uma saudade que dói como uma fome eterna,

Rasgando em dor a madrugada mais escura,

Tento salvar o que ainda de ti vive em mim.

 

11.01.2021

 

Turku

 

João Bosco da Silva

 


O Amigo que me fez Gostar de Livros

 

Por Quem Os Sinos Dobram, ressoando nos nossos dezasseis anos,

Com Nietzsche completo a meias, trocando Descartes por Confúcio,

Os nossos primeiros amores pediam Cem Anos de Solidão,

Eramos imortais e tínhamos sonhos de Kubrick e polpa de tomate

À beira do rio Tuela, vinte anos depois, quando passaste na ponte,

Envias-me a última mensagem, ”Lembro-me sempre das coisas

O tempo passa muito rápido Qualquer dia já fomos Eu amanhã volto para lá”,

E hoje releio e volto para lá também, e tu estás comigo,

Será sempre verão, o tempo não passará e a vida um livro que se renovará,

Sempre.

 

11.01.2021

 

Turku

 

João Bosco da Silva


Ragnarok

 

Guiada por Apolo ou o que quiserem chamar ao destino,

A flecha, inesperada, atingiu mortalmente o melhor dos heróis,

O meu herói, que desde cedo agarrou a vida com vontade e certeza

E a guiou com um sorriso, iluminando os corações mais negros,

Ao verem-te agarrar cada desafio com tal força e dedicação, acender vida em vazios,

Invejaram-te os deuses, que por nunca terem amado, nunca viveram,

Imortais no seu vazio todo-poderoso, apagaram a vida, a quem com duas mortais mãos,

Contruiu mundos inteiros e vidas plenas, amou e foi amado, só um herói é assim invejado

Pelos deuses do Olimpo, mas tu caíste no campo de batalha, lutaste até ao fim,

E as valquírias te levarão até Valhalla, onde me esperarás atento,

Confiante que eu, um dia consiga merecer sentar-me ao teu lado.

 

11.01.2021

 

Turku

 

João Bosco da Silva


sábado, 9 de janeiro de 2021

 


Soluçar no Vazio

 

adeus amigo,

 

 

Se alguém mereceu viver, foste tu, agora todas as páginas em branco

Tem um peso amargo, custam-me focar as palavras líquidas,

Que soluçam em todas as doces recordações, o teu sorriso seguro,

Forte como o abraço mais apertado, dói pela sua impossibilidade,

Como pode o mundo continuar com o mesmo ar inocente,

E levar os dias à noite como se fosse apenas mais um acaso,

Depois de num golpe rasgar todos os sonhos e futuros possíveis,

Tento resgatar todas a memórias num momento, com uma ânsia

Desesperada de te poder salvar, mas tudo uma ilusão como o futuro

Que pintávamos com as mãos adolescentes, quando ainda imortais,

Estas mãos nunca tão ridículas e impotentes, nunca me senti tão humano,

Sem deuses a quem culpar, uma gota suspensa na infinita aleatoriedade,

Que faço eu ainda com este ar que não mereço, nestes pulmões que soluçam,

Quando tu meu amigo, um sorriso eterno, quando fecho os meus olhos distantes.

 

09.01.2021

 

Turku

 

João Bosco da Silva

sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

 

Silêncio de Espelho Partido

 

a Leopoldo María Panero,

 

Há quantos anos não te dedicas a caçar moscas-varejeiras com vinagre,

Leite da ordenha sobre a tua caveira consolidada da infância,

Miserável cuja sede uma pátria em delírio,

O teu desejo um anão comendo uma virgem,

Abençoada união com urina da morte, a vida um desastre de sangue,

Nada, tudo nasce do soluço de um duende febril,

O pus de um desejo na imundice de uma fada,

O sémen de um verme nas flores de uma bruxa e no fim merda e Nada.

 

Turku

 

07.01.2021

 

João Bosco da Silva

quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

 

Figos Podres

para o tio Tagana,

 

Apodrecem os figos como o tanque debaixo da figueira,

Onde as vespas pairam sobre a água choca atraídas

Pelo cheiro doce da ruína, o fascínio do tio pelos postes de alta tensão,

Secou antes do último reboco, um glioblastoma que se multiplicou,

Enquanto os morangos se deixaram perder, por falta de uma mão

Que abrisse labirintos de agueiras, debaixo da figueira ainda o espaço

Da framboeseira, pé trazido de um planeta longínquo onde o tio

Deixou uma namorada francesa, que grande o mundo quando te desenhava

Num bocado de papel de um saco de ração para as galinhas,

Enquanto o teu irmão lavava as mãos no lavatório de esmalte na varanda,

As fitas da porta cagadas pelas moscas e pela distância,

Verões mais tarde, estranhas adolescentes na casa que mal chegaste a estrear

E eu como as vespas, voando sobre o cheiro húmido e doce da ruína.

 

Turku

 

06.01.2021

 

João Bosco da Silva