domingo, 10 de abril de 2022

Língua Materna

 

E é difícil escrever quando não se usa esta língua de fragas

E beatas, de santos e aldrabões beatificados, de mármore

E velas nos cemitérios onde crescem couves galegas e saudades,

Cerejas nas orelhas das meninas da segunda classe, caranguejos

Em sacos de plástico nos intervalos do aniversário

Da filha da peixeira, é difícil escrever, depois de emigrar,

Logo depois dum papel que nos torna aptos para ser

Acrobatas, exorcistas, equilibristas e ilusionistas,

Em ilhas abençoadas pelos ares africanos, é difícil escrever

Quando usamos uma língua que doma renas, o urso

E as ondas do Bótnia, usamos e não dominamos,

E o urso vem e as renas vêm e o Bótnia já nos cobre

E nos sonhos, agarramos a gaita com vergonha,

De olhos fechados e contra uma parede branca deixamos

A marca que é o silêncio dos filhos que nunca terão

Que sofrer neste mundo de ninguém, do qual demasiados

Julgam ser donos, ridículos, todos, reis de um futuro vazio,

É difícil quando esta língua, esta mistura de sotaque celta

Com opressão romana, este orgulho de expansão católica,

Propaganda colonialista, se tem que arrancar dos sonhos,

Dos momentos de silêncio comigo mesmo, do dicionário

Ao lado do copo vazio que afasta as palavras maiores

E mantém ao lado a simplicidade do vómito mais sincero.

 

Turku

 

10.04.2022

 

João Bosco da Silva


Continuar a Tentar Ser Algo que Nunca Fui

 

Um dia Paris, ou outra cidade qualquer com que se fazem

Os clichés, e nos longe, sempre, todos os reecontros impossíveis,

Os aeroportos fechados por causa de algo demasiado real

E próximo como uma pandemia ou uma guerra, não há mais

Tragédias que existam apenas na ficção ou nas histórias dos velhos,

Até a morte do melhor amigo, que mais desta vida,

Que mais nos arrancará os ossos sem tocar na pele de tik-tok,

Ou a merda com que enchem os olhos nestes dias,

Tenho a idade para ter inventado meia-dúzia de deuses,

Ou ter-me tornado num profeta, para santo já sou demasiado velho,

Como sou velho para sonhar novos sonhos, mesmo até

Para ressuscitar os que a vida tornou obsoletos ou infantis,

Ao que parece, as Syrah, estão a rebentar, quem diria,

Ainda consigo criar alguma vida, mesmo num papel de deus,

Sem tocar, sem abrir a terra, sem puxar a água, distante,

Será esse o meu epitáfio, “foi distante”, e nada me descreverá

Com maior fidelidade, mas nós longe, há demasiado tempo,

É estranho, como o que foi perfeito durante umas horas,

Foi mantido durante décadas impossível, como se o mundo

Em risco, enquanto consumíamos a escuridão de uns quartos

Alugados numas cidades ignoradas pelos alvos das ogivas nucleares,

A estas horas, começar um poema parece-me tão ridículo

E ao mesmo tempo é tudo o que posso fazer, para provar que vivi

E estou vivo e perdi a força para dizer não ao impossível,

Cheguei ao tempo em que o real me leva o melhor amigo

E o amor é algo que todos os dias me convenço que é o que for,

Um copo vazio, uma garrafa vazia, uma varanda um cemitério,

Um dia Paris, como Londres foi uma despedida que durou

Menos de um ano, ou mesmo o Porto, onde me despedi de mim,

Ridículo para sempre, tornar vergonha em aversão,

Um dia Paris, ignorando os fantasmas, a pele das mãos

Que já longe dos vintes, o cansaço que tão ávido se apresenta

Para tomar conta do resto dos dias, os grilos que tanta falta fazem

Nas noites quentes, mesmo quando só queremos olhar o céu

E ver pedaços de pedra rasgar o firmamento com riscos de luz e nada,

Esse ridículo maior de continuar a tentar ser algo que nunca fui.

 

10.04.2022

 

Turku

 

João Bosco da Silva