sexta-feira, 20 de março de 2020


No Cemitério de Vila Formosa

No Cemitério de Vila Formosa a terra é cor de tijolo, os mosquitos são famintos
Mesmo com trinta graus e o Sol é húmido de inferno e cólera,
Demorei trinta anos a visitar-te e agora vejo este monte de terra quente,
Com um cata-vento vermelho e verde, que roda às vezes,
Mesmo sem vento e tu sorris de uma foto pequeníssima,
E comove-me a forma como a tia arranca uma erva daninha,
Com o mesmo cuidado de quem tira um cabelo solto da cara de alguém,
Rega as plantas porque não te pode dar um abraço,
A morte dói só aos vivos quando o amor permanece,
Apesar da humidade do ar, aquele calor é doloroso como metal,
A minha prima soluça, não consigo deixar de olhar para aquela terra estranha,
Onde passarás o resto dos dias que já não te restam,
Custa-me esta distância, o pouco que me ficou de ti, um gelado esmeralda,
Um carrinho de brincar, o sorriso que parecia dizer que tudo está bem,
Segurando uma g3 numa foto da tropa, um monte de terra vermelha,
Entre milhão e meio, no mato rodeado por uma floresta cinzenta,
Contudo, o Cemitério de Vila Formosa, não será a tua última morada,
Essa será naquele ente último a lembrar-te ou este poema.

Turku

20.03.2020

João Bosco da Silva


quarta-feira, 18 de março de 2020

Oku no Hosomichi 

Recebi um livro de Bashō que não me lembro de ter encomendado, 
Não é sequer um livro de haikus, é um diário de viagem, 
Não sei quem o enviou, provavelmente alguém que já me esqueceu 
E no entanto, julga conhecer-me, li a versão em português, 
Numa das últimas visitas a Portugal, terá sido alguém com lugares comuns, 
Mas distantes, como as ilusões que partilhamos, as mentiras em que escolhemos acreditar 
E as verdades que não quisemos ver, deve ter sido alguém que me teve 
Como ninguém e mesmo assim me deixou secar na certeza de um aperto estrangulador, 
De Bashō, prefiro a poesia, em cada haiku a eternidade na simplicidade, 
Um beijo que se toma sempre fresco a cada nova leitura, um olhar que não se apaga, 
Mesmo assim, fiquei feliz com o livro, como quando se encontra uma carta 
Do dia de São Valentim, entre os cadernos de escola, uma carta ridícula e inocente, 
Agora inócua, como todos os amores que se consumiram até à cinza, 
Contudo seguro o livro com tristeza, nunca o irei ler, há viagens irrepetíveis e ainda bem. 

São Paulo 

12.03.2020 

João Bosco da Silva 
Insónia e Carro da Fruta 

Às nove da manhã o carro da fruta anuncia nomes estranhos a cinco reais, 
Mal consigo imaginar as formas, nem tento adivinhar o sabor, 
A boca seca da cachaça e a lua cheia não me permitem sequer o gosto daquelas palavras, 
Dormi mal, às quatro da manhã o vizinho tossia e tranquei a porta do quarto 
Depois de dar uma vista de olhos ao portão da rua, sentei-me na sanita uma hora 
Com o Bukowski ao colo, o mundo parece acabar todos os dias 
E agora à uma da tarde os grilos parecem ser a única eternidade possível. 

São Paulo 

12.03.2020 

João Bosco da Silva 

terça-feira, 17 de março de 2020

Tropicalia We 

Somos donos apenas da nossa ilusão, convencidos da imortalidade 
Do nosso legado, vamos consumindo violentamente o nosso sustento, 
Trocamos o perigo da floresta pelo perigo selvagem do betão, 
Preferimos o medo do irmão a trocar de lugar na cadeia alimentar, 
Onde uma árvore cai, ergue-se um sonho sem futuro, 
Somos aquilo que merecemos, somos o fim do mundo que tememos. 

São Paulo 

07.02.2020 

João Bosco da Silva 
Página em Branco 

Quando nada parece fazer sentido, a página em branco salva, 
Ocupar o vazio, preenche, chove sobre os passeios sujos, 
Lava o carnaval para o esquecimento das sarjetas 
E a página em branco, imaculada, agora um espelho sujo, 
Uma companhia silenciosa, um sorriso grotesco para dentro, 
Quando nada parece ter sentido e a solidão esmaga como o betão 
Esmaga o horizonte, a página em branco transforma-se 
Nas flores inesperadas sobre o asfalto onde passam vidas. 

São Paulo 

07.02.2020 

João Bosco da Silva 
Chuva Tropical 

Sobre uma alma cinzenta a chuva cai, prometendo verde e sonhos de arco-íris, 
Mas os olhos fecham-se amargos, como todas as doces recordações 
Que o tempo azedou em distância, ninguém será aquele preservativo estrangulado 
Num nó sem pressa, ao lado das serpentinas e dos confetes do Carnaval passado, 
A vida é um carrossel, diziam-me aqueles olhos verdes no primeiros Invernos, 
Com a mesma inocência com que abria as pernas à vontade simples de mais um caralho dentro, 
A chuva cai e tudo tão distante que as feridas abrem como o deambular insone 
Numa noite de febre, o ar tropical incomoda a força melancólica dos dedos resignados, 
A estas horas ninguém chora, a neve parece impossível e o poema é o ridículo tangível. 

São Paulo 

07.02.2020 

João Bosco da Silva