Isto, Aquilo, o Copo Vazio
Acabo de escrever mais um poema e tento enfiar-lhe uma data,
Dois mil e … vinte?... e dois, como pode ser isto, durar
tanto,
Nem Cristo viveu tanto, estes anos todos, pior que uma
couve,
Nem o raio de uma caldo-verde consigo ser, o chouriço vai
aguentando,
Cada vez com menos fome, começou tão bem, a sede cada vez
maior,
Não sei se sede, se vontade de ir mais rápido, não
interessa,
Mas na verdade, nada interessa, a primavera continua a
parecer
Impossível à distância de dois meses, o pinot noir começa a
substituir
O aroma de certas mulheres a que não conseguia resistir,
Começa a tornar-se no cheiro que levava nos dedos para casa
de madrugada,
Cravo-da-índia, e a tua hesitação no carro da minha mãe no
final
De Setembro, como aquela noite à caça de porcos-monteses
No Alandroal, aquela bala que logo passei ao meu padrinho,
As rãs mudas depois da explosão, ao contrário daquelas no
norte,
Enquanto deitado numa manta com uma prima afastada,
Eu que falhei ao meu avô também, segurar a caçadeira,
Apontar ao alvo colado à figueira com saliva de cirrótico,
A bala rebentou o coração do porco, o fígado rebentou no meu
avô,
Eu espero, um fim qualquer, tantos copos vazios numa vida
igual,
Aos poucos, regresso também ao poeta que era, quase quarenta
anos
Agora, tenho o reconhecimento no silêncio, no esquecimento,
O Ferlinghetti sentado numa cadeira sorri para mim,
La LLorona do Picasso, chora, como a mãe que perdeu o meu
Melhor amigo, e eu continuo, inútil, empurrando mais um
embolo,
Adianto um dia, uma semana, um mês, se calhar dando até uma
vida
Que se valeu a pena viver, não isto, não isto, este esquecimento
Antes do inverno se tornar eterno, até os amigos, a estas
horas,
Preferem mais um morto, já que enquanto o coração bate,
Não merece honras, cresce e desaparece, isto, aquilo, o copo
vazio.
18/02/22
Turku
João Bosco da Silva
Sem comentários:
Enviar um comentário