sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Isto, Aquilo, o Copo Vazio

 

Acabo de escrever mais um poema e tento enfiar-lhe uma data,

Dois mil e … vinte?... e dois, como pode ser isto, durar tanto,

Nem Cristo viveu tanto, estes anos todos, pior que uma couve,

Nem o raio de uma caldo-verde consigo ser, o chouriço vai aguentando,

Cada vez com menos fome, começou tão bem, a sede cada vez maior,

Não sei se sede, se vontade de ir mais rápido, não interessa,

Mas na verdade, nada interessa, a primavera continua a parecer

Impossível à distância de dois meses, o pinot noir começa a substituir

O aroma de certas mulheres a que não conseguia resistir,

Começa a tornar-se no cheiro que levava nos dedos para casa de madrugada,

Cravo-da-índia, e a tua hesitação no carro da minha mãe no final

De Setembro, como aquela noite à caça de porcos-monteses

No Alandroal, aquela bala que logo passei ao meu padrinho,

As rãs mudas depois da explosão, ao contrário daquelas no norte,

Enquanto deitado numa manta com uma prima afastada,

Eu que falhei ao meu avô também, segurar a caçadeira,

Apontar ao alvo colado à figueira com saliva de cirrótico,

A bala rebentou o coração do porco, o fígado rebentou no meu avô,

Eu espero, um fim qualquer, tantos copos vazios numa vida igual,

Aos poucos, regresso também ao poeta que era, quase quarenta anos

Agora, tenho o reconhecimento no silêncio, no esquecimento,

O Ferlinghetti sentado numa cadeira sorri para mim,

La LLorona do Picasso, chora, como a mãe que perdeu o meu

Melhor amigo, e eu continuo, inútil, empurrando mais um embolo,

Adianto um dia, uma semana, um mês, se calhar dando até uma vida

Que se valeu a pena viver, não isto, não isto, este esquecimento

Antes do inverno se tornar eterno, até os amigos, a estas horas,

Preferem mais um morto, já que enquanto o coração bate,

Não merece honras, cresce e desaparece, isto, aquilo, o copo vazio.

 

18/02/22

 

Turku

 

João Bosco da Silva

 

 

 


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