Obra ao Cinzento
Já vi morrer mais gente, do que gente que fodi, o que é
triste,
Bebo, tenho bebido, sem ter como intenção libertar o medo
dos olhos,
Os anos oitenta foram há vinte anos, tal como o virar do
milénio,
Que há a dizer sobre isto, a não ser que é verdade a teoria de
Einstein,
O Michael Jackson nunca morreu e o Saramago continua a ser
O único nobel português vivo, foi tudo num virar de
estações,
As madrugadas sabem a fastio lento e longo, uma espuma
cinzenta
De mercúrio preguiçoso, todos os acentos, um aborrecimento
adiado,
Um gemido fingido depois dum suspiro açaimado, Annie are
you ok,
Vamos pedindo mais uma francesinha, sorrindo a velhos amigos,
Fingindo que o rio passa e a caravana ladra à frente dos
bois,
Mas nada está bem, não se somam sonhos, contam-se vontades,
Fracas, escorregadias, como pérolas falsas de um colar que
se rompeu
Numa casa de banho de deficientes, na pausa de um filme sobre
Um livro de Tolstói, sujas, pequenas, as pérolas, depois
De outras pérolas engolidas à pressa, para regressar ao
tédio do filme,
Anna Karenina,
are you ok, are you ok, Annie,
Meia dúzia de pérolas de plástico no bolso, e alguém diz que
não,
Não se continuará a adiar a morte, duas miligramas de
adrenalina,
Em vão, cento e cinquenta joules num coração para o talho,
Outro que bate, contente, um necromancer moderno e licenciado,
Para se vir numa foda e perguntar, fodi bem, não fodi, sim
fodeste,
Agora que te engoli, sonha meu rei, praias brasileiras, ressacas
de coco,
Laranjas colhidas da árvore, vespas da terra, dorme,
necromancer,
Poeta, anjo do apocalipse, vergonha de copo vazio e alma de
garoto
A quem num dia de chuva, outros dois da quarta classe,
lançaram numa fossa sanitária.
29.10.2020
Novigrad
João Bosco da Silva
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