quarta-feira, 28 de outubro de 2020

 

Auto dos Danados

 

 

Acordar cedo para acender o lume, dentro o vazio, o resto crepita lá fora,

Uma geada épica como a fome de batatas, a roupa estendida, bacalhaus

Que alguém esqueceu, como amores que aos poucos se esquecem,

Não fosse a insónia e a falta de pinhas para acender outros lumes,

Os vizinhos apertam as cafeteiras e aproximam as garrafas de aguardente

Antes de pegarem nas enxadas para cavarem a terra ainda dura,

Os dedos ainda azedos, cheira tudo ainda a cu lavado, amor enquanto dura,

As macieiras imaginam doçuras ainda impossíveis, tu chegas, aproximas-te

Das chamas ainda frias, o teu corpo parece outro coberto de roupa,

Ainda te amarei, em sonhos talvez, de outra forma, vazio e ódio,

O ódio sempre mais fácil quando as mãos vazias, ou alguém dentro

De um corpo que não pertence e foi tão nosso, o escano de madeira sabe,

Fode-me, fode-me, diziam os teus lábios de puta inocente,

E eu ia tão fundo que encontrei amor, ou sei lá o que foi, hoje, não sei,

Hoje que os lábios vazios e roxos, cansaço, um cemitério sem ossos,

Apenas ausências, noites incontáveis sem sonhos, tardes em sofás sem ilusões,

Apenas recordações pálidas, cada vez mais o nevoeiro, a velar as formas,

Lembro-me que as tuas areolas do tamanho da minha fome inteira,

Rosadas como imaginava a luxuria, mas aos poucos até a tua fome do meu esperma

Outra, dizias, que no início normal, e depois menos fome, não pedias,

Vem-te na minha boca, se calhar a tua boca cheia de futuros estranhos,

Que só por delicadeza, não aceitavas na tua cona imaculada,

Então engolias, amigavelmente, a troca de ilusões que eu já não

Consegui fingir dar, foi cedo, a fogueira, tudo, tarde, como a despedida.

 

Turku

 

28.10.2020

 

João Bosco da Silva

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