Auto dos Danados
Acordar cedo para acender o lume, dentro o vazio, o resto
crepita lá fora,
Uma geada épica como a fome de batatas, a roupa estendida,
bacalhaus
Que alguém esqueceu, como amores que aos poucos se esquecem,
Não fosse a insónia e a falta de pinhas para acender outros
lumes,
Os vizinhos apertam as cafeteiras e aproximam as garrafas de
aguardente
Antes de pegarem nas enxadas para cavarem a terra ainda
dura,
Os dedos ainda azedos, cheira tudo ainda a cu lavado, amor enquanto
dura,
As macieiras imaginam doçuras ainda impossíveis, tu chegas,
aproximas-te
Das chamas ainda frias, o teu corpo parece outro coberto de roupa,
Ainda te amarei, em sonhos talvez, de outra forma, vazio e
ódio,
O ódio sempre mais fácil quando as mãos vazias, ou alguém
dentro
De um corpo que não pertence e foi tão nosso, o escano de
madeira sabe,
Fode-me, fode-me, diziam os teus lábios de puta inocente,
E eu ia tão fundo que encontrei amor, ou sei lá o que foi,
hoje, não sei,
Hoje que os lábios vazios e roxos, cansaço, um cemitério sem
ossos,
Apenas ausências, noites incontáveis sem sonhos, tardes em
sofás sem ilusões,
Apenas recordações pálidas, cada vez mais o nevoeiro, a
velar as formas,
Lembro-me que as tuas areolas do tamanho da minha fome
inteira,
Rosadas como imaginava a luxuria, mas aos poucos até a tua
fome do meu esperma
Outra, dizias, que no início normal, e depois menos fome,
não pedias,
Vem-te na minha boca, se calhar a tua boca cheia de futuros
estranhos,
Que só por delicadeza, não aceitavas na tua cona imaculada,
Então engolias, amigavelmente, a troca de ilusões que eu já
não
Consegui fingir dar, foi cedo, a fogueira, tudo, tarde, como
a despedida.
Turku
28.10.2020
João Bosco da Silva
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