sexta-feira, 28 de março de 2025

 



Linhas Paralelas

 

O sol recortado pelos estores, desenha linhas paralelas

Sobre a mesa de madeira, lentamente, impercetivelmente,

As linhas movem-se, também o coração bate e nem damos por isso,

Se não nos concentrarmos no eco da almofada

Numa noite de insónia ou no ofegante peso da idade no pós-coito,

Também a caneta passa nestas linhas mais óbvias,

Tão estáticas quanto tudo o resto dependendo da distância

E do tamanho do interveniente, nisto, a primavera chega,

Definitiva como sempre e só à noite, cada vez mais curta,

Ecos de mais uma depressão, coberta pelo fino pó deixado pelo inverno.

 

21/03/2025

 

Turku

 

João Bosco da Silva

quarta-feira, 26 de março de 2025

 


No Ar

 

Tenho escrito muitas vezes em pleno voo,

Existe uma certa redundância nisso,

Estar sem estar no lugar onde se está,

Estar alto, onde melhor cabem os sonhos

E as ilusões, entrar em queda livre,

Suster a respiração, olhar à distância,

Imaginar o resto que os olhos não alcançam,

Como devem fazer também os deuses,

Imaginam que está tudo bem,

É uma forma de esticar as pernas

Enquanto se está preso na viagem,

Quando finalmente se sai do avião,

A vida regressa num país diferente,

Outro peso no ar, outros cheiros, o mesmo fim.

 

Florença-Amesterdão

 

10/03/2025

 

João Bosco da Silva

 


“mas é na ausência de tudo que

mais me reconheço.”

Luísa Freire

 

A palavra infinito tem uma extensão

Que a nossa compreensão não abarca,

A palavra em si, finita, com início e fim

Bem definidos, é como o que nos cabe

Nos olhos à noite e olhamos o céu limpo

E pensamos, universo, tudo nos cabe

Nas palavras, tantos inícios e fins

A caminho da eternidade.

 

Siena

 

09/03/2025

 

João Bosco da Silva

sábado, 22 de março de 2025


 

Pisa e Castlevania

 

A primeira vez que aqui estive, apesar de ainda o corpo jovem,

Foi bem mais difícil subir a torre até ao topo,

Os vassalos do Drácula pelo caminho a semear pesadelos,

Pelo que a mãe de hora a hora, anunciava a falha na luz

E de facto um interruptor dava um estalido,

Porque não estava também a máquina a lavar,

Mas naquele tempo não planeava tão bem as coisas,

Apesar de ter mais tempo pela frente, vivia-se com mais pressa,

Com um pé sempre no amanhã, hoje, a primeira vez de facto

Que subo esta torre, que tantas vezes em sonhos,

Acordado ou não, me visitou, do que me lembro é daqueles momentos,

Em que contrarrelógio, tentava subir a torre, tão diferente,

Tão maior quanto terrível, naquele jogo Castlevania.

 

Pisa

 

07/03/2025

 

João Bosco da Silva

quarta-feira, 19 de março de 2025

 


Grave

 

Sob este azul imaculado, rodeado de montes,

Vinhas e olivais, só estranho a língua,

Mas nem tanto, um maior respeito pela arquitectura,

Uma história cuidada mais bem contada e universal,

Mas isso é apenas humano, nada nos une tanto

Quanto o vinho e o azeite, torna-nos o sangue irmão.

 

Grave in Chianti

 

06/03/2025

 

João Bosco da Silva

terça-feira, 18 de março de 2025

 


Piazza della Passera

 

“E ainda hoje me pergunto: será que exististe?

Teu rosto agora um desenho esfumado e

confuso que o pó dos anos foi apagando.”

 

Luísa Freire

 

Num restaurante da Piazza della Passera, olhando à volta,

As paredes mal grafitadas dos edifícios, os remendos nas paredes,

Vejo algo de Porto, algo teu, sinto quase aquela tua presença,

Naquela noite em que me levaste a bares de ruas quase vazias,

Quando isso era possível como o eco dos nossos passos nos paralelos,

Viveste muitas vidas, dizes-me, eu continuo na mesma,

Como uma cidade antiga que nunca foi completamente demolida,

Erguendo ruína sobre ruína, ouvindo o ruído de ruas desconhecidas,

Rumores bem familiares vindos de outros tempos, outras gentes,

O mundo é bem um só, coubesse todo ele numa vida.

 

Florença

 

05/03/2025

 

João Bosco da Silva

segunda-feira, 17 de março de 2025

 


Haikus Quotidianos

 

Na pousada do rio Suga

a Alva

fez popó.

 

As douradas

folhas da bétula

acenam adeus.

 

Nas bétulas frias

borboletas moribundas –

brisa de Outono.

 

Nos ramos nus

é agora cobre

o pôr-do-sol.

 

Nos ramos de cobre

o crepúsculo

de outono.

 

Brevemente de cobre

os ramos nus

ao crepúsculo.

 

Longe o sol tímido

à beira da rio Kamo –

Novembro finlandês.

 

Enquanto a pizza aquece

vejo o último episódio

d´El Bulli.

 

Mesmo quando muito

a primeira neve

não incomoda ninguém.

 

Na tua descompassada respiração

encontro o ritmo

dos meus dias felizes.

 

Todas a manhãs acordo

com uma pedra

no sapato.

 

Sem o saber

que pontes terei atravessado

pela última vez?

 

Na bétula nua

a gralha olha

o vazio da sala.

 

Da bétula nua

a gralha olha

o silêncio da sala.

 

Encurralada a mosca

entre os vidros da janela

morre à fome.

 

A mosca encurralada

entre os vidros da janela

morre ao sol de inverno.

 

No coaxar das rãs

todas as palavras de amor

que ficaram nos silêncios,

 

Coaxam as rãs

entre que pernas

verti a minha juventude?

 

O que traz o degelo –

velhos amores

e merda de cão.

 

Olhar esta mosca

com mais atenção

que a um presidente.

 

Aprender a olhar

o próximo

ao alcance da vida.

 

Brinca a bebé

com redundâncias –

dinossauros de plástico.

 

Segurando uma pequena pedra

ignoro o peso

do mundo.

 

Se não consegues segurar

o mundo

concentra-te numa pedrinha.

 

Equilíbrio

em cinzenta apneia –

nem neve nem verde.

 

Não é esquecer

que é triste

é ser-se esquecido.

 

Não é triste esquecer

triste é

ser-se esquecido.

 

Não é triste morrer

triste é

quando nos morrem.

 

Juntos meu amor

foi mais belo o breve

que a eternidade.

 

Inverno 2024-2025

 

João Bosco da Silva

 




Haikus Toscanos

 

Da carne e da vontade

que imponentes torres ergueu

nada resta.

 

Onde antes brasões

agora

duas janelas.

 

No céu azul de Florença

dois aviões

e algumas andorinhas.

 

Procurar Adriano

sem sucesso –

erro meu.

 

Manhã de inverno

tarde de verão –

casaco à pendura.

 

Depois de uma noite

de febre e calafrios

arte como bálsamo.

 

Muito andou Jesus

por Florença –

quadros renascentistas.

 

No meio de tanta beleza

é do seu piscar de olhos

que tenho saudades.

 

Não trocava todas as visitas

a museus por todas

as fraldas que te troquei.

 

Nunca se está só

quando há sempre

a companhia de um pardal.

 

Olham o futuro

com ar sério

os autorretratos.

 

Aquela expressão comum

dos autorretratos

olhando para o futuro.

 

Sob o céu Toscano

é das rãs do poço

que me lembro.

 

Escadas agora obsoletas

para chegar

ao esquecimento.

 

De cor-de-rosa pinta

a catedral –

crepúsculo.

 

Todas dadas

pelo sol

as cores.

 

Não pensar em nada

mais além

do próximo passo.

 

À noite as cidades

reflectidas no rio

são uma.

 

Arrancar um ramo

de alfazema –

levar a casa num bolso.

 

Toscana, Março 2025

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

 


Lohengrin

 

Enquanto ouço Lohengrin, sinto o gentil peso

Do teu sono no meu peito, fecho também eu

Os olhos para saborear mais profundamente

A tua companhia imaculada, sinto todo o peso

Dos anos lavar-se da cara que me veste,

Uma leveza morna, como o leite nas manhãs

Da infância, inspiro fundo, como se há anos

Numa apneia, estou longe, sinto o cheiro fresco

Da terra revolta pela enxada do meu pai,

Adivinho o brilho da gota de orvalho numa couve,

Sinto-me longe de ser sábio e do inferno,

No ribeiro ao fundo da encosta da vinha,

Eleva-se uma bruma, vozes que não partiram,

Está tudo no lugar certo e o mundo ainda

Um mistério justo que faz sentido, tivesse eu

Sempre o bálsamo da tua serenidade restauradora,

Em breve verás pela primeira vez o regresso das folhas,

O inverno foi meigo, não prometo melhoras,

Mas entrego-te os meus braços para sempre.

 

Turku

 

25/02/2025

 

João Bosco da Silva

domingo, 23 de fevereiro de 2025

 

 

 


Não te cubras de angústia, agora que o visco

Dos teus desejos não será sentido

Na pele alheia que te ignora,

Foram belas as noites à beira do rio,

As rãs cantam na mesma língua,

Só as certezas se tornam cada vez

Mais raras, como o cabelo

E os medos tão evidentes e inúmeros

Como os que sobram, brancos,

Uma vergonha nos espelhos,

Não te cubras por isso de angústia,

Ou saudade, tudo lá ficou, tudo lá está,

Basta recordares, ouvires as rãs,

Deixares-te levar pelo aroma fresco

Do rio no início da primavera,

Longe dos primeiros degelos,

De todos os amores, que também

Eles envelheceram, se tornaram

Uns em vergonhas, outros em nostalgia,

Nenhum foi, contudo, inútil,

Tudo acrescentou significado

Ao cantar das rãs e valor ao silêncio.

 

23.02.2025

 

Turku

 

João Bosco da Silva

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

 


Corda bamba

 

Quando os dias estão cheios,

Não há espaço para a poesia,

Nem se repara se chove

Ou se faz sol, o tempo passa,

Seja do passado para o futuro

Ou vice-versa, nada do que fazes,

Fizeste, ou farás é, realmente,

Escolha tua, há uma só linha,

Todas as infinitas possibilidades,

Não te pertencem, nem te seguram

O pêndulo, quer o tempo corra

Em que sentido correr,

O desfecho será o mesmo,

Apagamento da tua consciência

E ilusão de individualidade,

Não corras, que não é possível,

Deixa-te levar, não te rebaixes

Nem te eleves, vai esquecendo,

Facilita o regresso ao nada.

 

06/02/2025

 

Turku

 

João Bosco da Silva

terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

 


Poeta

 

O meu pai disse-me hoje

Que ia plantar umas árvores,

Deixar assim frutos ao futuro,

Não há poema meu que lhes

Sobreviva, só queria que, também

Ele que as planta, pudesse,

Num dia quente de verão,

Gozar da sua sombra

Na companhia do futuro

Que lhe provará os frutos.

 

04/02/2025

 

Turku

 

João Bosco da Silva

terça-feira, 28 de janeiro de 2025

 

 


 

Quanto excesso cabe nos interstícios

De uma noite esperada, haverão questões

Que salvem, mãos que empurrem

Os sonhos na lama, mergulhando-os

Em profundidades de visco e merda,

Quem nunca viu uma árvore

A não ser no inverno, onde encontrará

A felicidade e a cor dos dias,

Sob a neve ninguém adivinha sequer

A areia da praia e a merda dos ganços

Que partiram quando o verão acabou,

Os livros esperam, marcados pela desistência

Insegura, nada corre a não ser o tempo

E a tormenta das artérias.

 

28/01/2025

 

Turku

 

João Bosco da Silva

sábado, 25 de janeiro de 2025

 


Cemitério Romano

 

“Llueve,

Llueve sempre en las ruinas.”

Leopoldo María Panero

 

Costumo sonhar com vastos cemitérios romanos,

Com árvores invernais, túmulos partidos,

Alguns ossos expostos que o esquecimento permite,

Contudo, não é um pesadelo, é um passeio lento,

Sem procura, no ar, o cheiro a mármore escurecido

Pelo fumo de mil velas, húmus e a ausência da carne,

Existe um silêncio sibilante, desconcertante

E apesar do vazio e da solidão, alguém me acompanha,

Sempre, há folhas caídas, já sem sinais de verão,

Algumas entram pelas brechas na pedra dos túmulos,

Tocam os ossos frios e anónimos pelo esquecimento,

Uma amalgama descomposta de matéria orgânica,

Onde não cabem sonhos de poder ou avareza,

Humildemente, passando por um souto seco,

Acordo mais uma vez e o mundo recebe-me sem entusiasmo.

 

24/01/2025

 

Turku

 

João Bosco da Silva

sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

 

um minuto ao sol e o silêncio possível – haikus

 

 

Conseguisse ser eu

limpo e claro

como esta manhã de dezembro.

 

Sentado ao Sol

ouço os pássaros –

manhã de véspera.

 

Ao sol esvoaçam

os enfeites de Natal –

manhã gelada.

 

Como o campo geado

também eu

ao sol.

 

Só peço um minuto

em silêncio ao sol –

manhã de consoada.

 

Só peço um minuto ao sol

e o silêncio possível

desta terra.

 

Secou o carrasco

da minha infância –

um coto seco e recordações.

 

Nascido da fraga

só cresceu

até a infância acabar.

 

A sombra do pequeno pinheiro

cobre quase todo

o campo verdejante.

 

O sol de um lado

a geada já do outro –

crepúsculo de consoada.

 

Galos cantam gatos lutam

bebé chora –

Natal em branco.

 

Pudesse eu

simplesmente ser

um varredor de musgo.

 

Uma infância sem ruínas

é uma infância

arruinada.

 

Arrumados os bombos

as oliveiras agora

também descansam.

 

Varrer as agulhas

deste musgo –

fosse esse o propósito.

 

Torre de Dona Chama, Dezembro 2024

 


CCC

 

Aqui, nesta caverna imutável, como se o tempo

Só passasse lá fora e se tenha esquecido de tudo,

Menos dos preços, regresso como a um refúgio,

Onde posso estar em companhia na minha solidão,

Relembro velhos desejos, amestrados pelo cansaço,

A agonia de amores perdidos, pouco resta no copo,

Um vestígio de espuma, a ideia de uma sede

Que nem sede era, uma fome que rasga e morde

E engole, na mesa ao fundo, a loira com camisa

De flanela lê, a cerveja a meio, leva-a aos lábios,

Apoia no punho toda a concentração do mundo

Naquele livro, por momentos apaixono-me,

Mas depois olho o relógio, o próximo autocarro

Parte em dez minutos, nunca há tempo para saltar no abismo.

 

Turku

 

08/01/2025

 

João Bosco da Silva

quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

 

Matéria Onírica

 

Lentamente se dissipa o nevoeiro,

Os sonhos tornam-se mais claros,

Apenas sonhos, em que tento ver

Se também as coisas neles,

São feitas das mesmas partículas

Do mundo real e se o são então

Quão real realmente o real é,

Se o sonho mostra a mesma clareza,

Uma cidade inteira, ruas que nunca vi,

Arranco um cartaz colado a um edifício

Que o meu cérebro construiu,

Com uma arquitectura clara,

Uma pintura perfeita, numa parede rugosa,

Rasgo o papel, e no rasgo os mesmos filamentos,

A fibra da pasta, pudesse eu ver

Microscopicamente e talvez,

Moléculas, átomos, num mundo onírico,

Sei que é um sonho, exploro a sua

Natureza, com a pressa de uma primeira vez

Que se sabe também última,

Aceito beijos sem remorsos, agarro tudo,

Em breve sairei deste sonho para outro.

 

02/01/2025

 

Turku

 

João Bosco da Silva

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

 

Crónica de Ano Novo

 

Noite de ano novo, as passas já se digerem,

Lavadas com champanhe, doze desejos,

A ilusão de que se concretizem,

Quando não se dá sequer o primeiro passo

Para chegar à mudança que se pede,

Na televisão, há anos silenciosa, mais do mesmo,

Alguém grita num dos apartamentos do prédio,

“Hei, Hei, Ajuda”, em finlandês, parece vir de cima,

O pedido repete-se, ainda se ouvem foguetes,

“Os finlandeses quando pedem ajuda, é porque precisam mesmo”,

Diz-me a minha companheira, alguém está realmente aflito,

Saio à procura da origem daquele grito,

No andar de cima, silêncio, em baixo a televisão,

O pedido torna-se quente, mais dois andares em baixo,

É certamente o velhinho que mora sozinho,

Vi-o uma vez de andarilho, segurei-lhe a porta

E fingiu nem me ver, bato à porta e confirmo,

Tinha caído, sozinho, na noite de ano novo,

Ligo às autoridades, passados minutos, vêm em auxílio,

Então regresso à minha caixa, invisível,

E continuo no champanhe, mais duas "ginebras"

Lembro-me por alguma razão do Leopoldo María Panero,

Quantas vezes no trabalho recebemos quem fica no chão dias a fio,

Rabdomiólise, hipotermia, hipernatremia, insuficiência renal,

Úlceras de pressão, necrose, acidose metabólica, hipoglicemia,

E tanto mais nos pode trazer a solidão de uma simples queda,

Hoje enquanto comia a meias uma tangerina com a minha filha,

Olhando a neve fresca deste ano novo,

Esboçava mentalmente esta pequena crónica de ano novo,

Pareceu-me um poema, mas afinal é apenas isto.

 

01/01/2025

 

Turku

 

João Bosco da Silva