sábado, 22 de março de 2025


 

Pisa e Castlevania

 

A primeira vez que aqui estive, apesar de ainda o corpo jovem,

Foi bem mais difícil subir a torre até ao topo,

Os vassalos do Drácula pelo caminho a semear pesadelos,

Pelo que a mãe de hora a hora, anunciava a falha na luz

E de facto um interruptor dava um estalido,

Porque não estava também a máquina a lavar,

Mas naquele tempo não planeava tão bem as coisas,

Apesar de ter mais tempo pela frente, vivia-se com mais pressa,

Com um pé sempre no amanhã, hoje, a primeira vez de facto

Que subo esta torre, que tantas vezes em sonhos,

Acordado ou não, me visitou, do que me lembro é daqueles momentos,

Em que contrarrelógio, tentava subir a torre, tão diferente,

Tão maior quanto terrível, naquele jogo Castlevania.

 

Pisa

 

07/03/2025

 

João Bosco da Silva

quarta-feira, 19 de março de 2025

 


Grave

 

Sob este azul imaculado, rodeado de montes,

Vinhas e olivais, só estranho a língua,

Mas nem tanto, um maior respeito pela arquitectura,

Uma história cuidada mais bem contada e universal,

Mas isso é apenas humano, nada nos une tanto

Quanto o vinho e o azeite, torna-nos o sangue irmão.

 

Grave in Chianti

 

06/03/2025

 

João Bosco da Silva

terça-feira, 18 de março de 2025

 


Piazza della Passera

 

“E ainda hoje me pergunto: será que exististe?

Teu rosto agora um desenho esfumado e

confuso que o pó dos anos foi apagando.”

 

Luísa Freire

 

Num restaurante da Piazza della Passera, olhando à volta,

As paredes mal grafitadas dos edifícios, os remendos nas paredes,

Vejo algo de Porto, algo teu, sinto quase aquela tua presença,

Naquela noite em que me levaste a bares de ruas quase vazias,

Quando isso era possível como o eco dos nossos passos nos paralelos,

Viveste muitas vidas, dizes-me, eu continuo na mesma,

Como uma cidade antiga que nunca foi completamente demolida,

Erguendo ruína sobre ruína, ouvindo o ruído de ruas desconhecidas,

Rumores bem familiares vindos de outros tempos, outras gentes,

O mundo é bem um só, coubesse todo ele numa vida.

 

Florença

 

05/03/2025

 

João Bosco da Silva

segunda-feira, 17 de março de 2025

 


Haikus Quotidianos

 

Na pousada do rio Suga

a Alva

fez popó.

 

As douradas

folhas da bétula

acenam adeus.

 

Nas bétulas frias

borboletas moribundas –

brisa de Outono.

 

Nos ramos nus

é agora cobre

o pôr-do-sol.

 

Nos ramos de cobre

o crepúsculo

de outono.

 

Brevemente de cobre

os ramos nus

ao crepúsculo.

 

Longe o sol tímido

à beira da rio Kamo –

Novembro finlandês.

 

Enquanto a pizza aquece

vejo o último episódio

d´El Bulli.

 

Mesmo quando muito

a primeira neve

não incomoda ninguém.

 

Na tua descompassada respiração

encontro o ritmo

dos meus dias felizes.

 

Todas a manhãs acordo

com uma pedra

no sapato.

 

Sem o saber

que pontes terei atravessado

pela última vez?

 

Na bétula nua

a gralha olha

o vazio da sala.

 

Da bétula nua

a gralha olha

o silêncio da sala.

 

Encurralada a mosca

entre os vidros da janela

morre à fome.

 

A mosca encurralada

entre os vidros da janela

morre ao sol de inverno.

 

No coaxar das rãs

todas as palavras de amor

que ficaram nos silêncios,

 

Coaxam as rãs

entre que pernas

verti a minha juventude?

 

O que traz o degelo –

velhos amores

e merda de cão.

 

Olhar esta mosca

com mais atenção

que a um presidente.

 

Aprender a olhar

o próximo

ao alcance da vida.

 

Brinca a bebé

com redundâncias –

dinossauros de plástico.

 

Segurando uma pequena pedra

ignoro o peso

do mundo.

 

Se não consegues segurar

o mundo

concentra-te numa pedrinha.

 

Equilíbrio

em cinzenta apneia –

nem neve nem verde.

 

Não é esquecer

que é triste

é ser-se esquecido.

 

Não é triste esquecer

triste é

ser-se esquecido.

 

Não é triste morrer

triste é

quando nos morrem.

 

Juntos meu amor

foi mais belo o breve

que a eternidade.

 

Inverno 2024-2025

 

João Bosco da Silva

 




Haikus Toscanos

 

Da carne e da vontade

que imponentes torres ergueu

nada resta.

 

Onde antes brasões

agora

duas janelas.

 

No céu azul de Florença

dois aviões

e algumas andorinhas.

 

Procurar Adriano

sem sucesso –

erro meu.

 

Manhã de inverno

tarde de verão –

casaco à pendura.

 

Depois de uma noite

de febre e calafrios

arte como bálsamo.

 

Muito andou Jesus

por Florença –

quadros renascentistas.

 

No meio de tanta beleza

é do seu piscar de olhos

que tenho saudades.

 

Não trocava todas as visitas

a museus por todas

as fraldas que te troquei.

 

Nunca se está só

quando há sempre

a companhia de um pardal.

 

Olham o futuro

com ar sério

os autorretratos.

 

Aquela expressão comum

dos autorretratos

olhando para o futuro.

 

Sob o céu Toscano

é das rãs do poço

que me lembro.

 

Escadas agora obsoletas

para chegar

ao esquecimento.

 

De cor-de-rosa pinta

a catedral –

crepúsculo.

 

Todas dadas

pelo sol

as cores.

 

Não pensar em nada

mais além

do próximo passo.

 

À noite as cidades

reflectidas no rio

são uma.

 

Arrancar um ramo

de alfazema –

levar a casa num bolso.

 

Toscana, Março 2025

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

 


Lohengrin

 

Enquanto ouço Lohengrin, sinto o gentil peso

Do teu sono no meu peito, fecho também eu

Os olhos para saborear mais profundamente

A tua companhia imaculada, sinto todo o peso

Dos anos lavar-se da cara que me veste,

Uma leveza morna, como o leite nas manhãs

Da infância, inspiro fundo, como se há anos

Numa apneia, estou longe, sinto o cheiro fresco

Da terra revolta pela enxada do meu pai,

Adivinho o brilho da gota de orvalho numa couve,

Sinto-me longe de ser sábio e do inferno,

No ribeiro ao fundo da encosta da vinha,

Eleva-se uma bruma, vozes que não partiram,

Está tudo no lugar certo e o mundo ainda

Um mistério justo que faz sentido, tivesse eu

Sempre o bálsamo da tua serenidade restauradora,

Em breve verás pela primeira vez o regresso das folhas,

O inverno foi meigo, não prometo melhoras,

Mas entrego-te os meus braços para sempre.

 

Turku

 

25/02/2025

 

João Bosco da Silva

domingo, 23 de fevereiro de 2025

 

 

 


Não te cubras de angústia, agora que o visco

Dos teus desejos não será sentido

Na pele alheia que te ignora,

Foram belas as noites à beira do rio,

As rãs cantam na mesma língua,

Só as certezas se tornam cada vez

Mais raras, como o cabelo

E os medos tão evidentes e inúmeros

Como os que sobram, brancos,

Uma vergonha nos espelhos,

Não te cubras por isso de angústia,

Ou saudade, tudo lá ficou, tudo lá está,

Basta recordares, ouvires as rãs,

Deixares-te levar pelo aroma fresco

Do rio no início da primavera,

Longe dos primeiros degelos,

De todos os amores, que também

Eles envelheceram, se tornaram

Uns em vergonhas, outros em nostalgia,

Nenhum foi, contudo, inútil,

Tudo acrescentou significado

Ao cantar das rãs e valor ao silêncio.

 

23.02.2025

 

Turku

 

João Bosco da Silva

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

 


Corda bamba

 

Quando os dias estão cheios,

Não há espaço para a poesia,

Nem se repara se chove

Ou se faz sol, o tempo passa,

Seja do passado para o futuro

Ou vice-versa, nada do que fazes,

Fizeste, ou farás é, realmente,

Escolha tua, há uma só linha,

Todas as infinitas possibilidades,

Não te pertencem, nem te seguram

O pêndulo, quer o tempo corra

Em que sentido correr,

O desfecho será o mesmo,

Apagamento da tua consciência

E ilusão de individualidade,

Não corras, que não é possível,

Deixa-te levar, não te rebaixes

Nem te eleves, vai esquecendo,

Facilita o regresso ao nada.

 

06/02/2025

 

Turku

 

João Bosco da Silva

terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

 


Poeta

 

O meu pai disse-me hoje

Que ia plantar umas árvores,

Deixar assim frutos ao futuro,

Não há poema meu que lhes

Sobreviva, só queria que, também

Ele que as planta, pudesse,

Num dia quente de verão,

Gozar da sua sombra

Na companhia do futuro

Que lhe provará os frutos.

 

04/02/2025

 

Turku

 

João Bosco da Silva

terça-feira, 28 de janeiro de 2025

 

 


 

Quanto excesso cabe nos interstícios

De uma noite esperada, haverão questões

Que salvem, mãos que empurrem

Os sonhos na lama, mergulhando-os

Em profundidades de visco e merda,

Quem nunca viu uma árvore

A não ser no inverno, onde encontrará

A felicidade e a cor dos dias,

Sob a neve ninguém adivinha sequer

A areia da praia e a merda dos ganços

Que partiram quando o verão acabou,

Os livros esperam, marcados pela desistência

Insegura, nada corre a não ser o tempo

E a tormenta das artérias.

 

28/01/2025

 

Turku

 

João Bosco da Silva

sábado, 25 de janeiro de 2025

 


Cemitério Romano

 

“Llueve,

Llueve sempre en las ruinas.”

Leopoldo María Panero

 

Costumo sonhar com vastos cemitérios romanos,

Com árvores invernais, túmulos partidos,

Alguns ossos expostos que o esquecimento permite,

Contudo, não é um pesadelo, é um passeio lento,

Sem procura, no ar, o cheiro a mármore escurecido

Pelo fumo de mil velas, húmus e a ausência da carne,

Existe um silêncio sibilante, desconcertante

E apesar do vazio e da solidão, alguém me acompanha,

Sempre, há folhas caídas, já sem sinais de verão,

Algumas entram pelas brechas na pedra dos túmulos,

Tocam os ossos frios e anónimos pelo esquecimento,

Uma amalgama descomposta de matéria orgânica,

Onde não cabem sonhos de poder ou avareza,

Humildemente, passando por um souto seco,

Acordo mais uma vez e o mundo recebe-me sem entusiasmo.

 

24/01/2025

 

Turku

 

João Bosco da Silva

sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

 

um minuto ao sol e o silêncio possível – haikus

 

 

Conseguisse ser eu

limpo e claro

como esta manhã de dezembro.

 

Sentado ao Sol

ouço os pássaros –

manhã de véspera.

 

Ao sol esvoaçam

os enfeites de Natal –

manhã gelada.

 

Como o campo geado

também eu

ao sol.

 

Só peço um minuto

em silêncio ao sol –

manhã de consoada.

 

Só peço um minuto ao sol

e o silêncio possível

desta terra.

 

Secou o carrasco

da minha infância –

um coto seco e recordações.

 

Nascido da fraga

só cresceu

até a infância acabar.

 

A sombra do pequeno pinheiro

cobre quase todo

o campo verdejante.

 

O sol de um lado

a geada já do outro –

crepúsculo de consoada.

 

Galos cantam gatos lutam

bebé chora –

Natal em branco.

 

Pudesse eu

simplesmente ser

um varredor de musgo.

 

Uma infância sem ruínas

é uma infância

arruinada.

 

Arrumados os bombos

as oliveiras agora

também descansam.

 

Varrer as agulhas

deste musgo –

fosse esse o propósito.

 

Torre de Dona Chama, Dezembro 2024

 


CCC

 

Aqui, nesta caverna imutável, como se o tempo

Só passasse lá fora e se tenha esquecido de tudo,

Menos dos preços, regresso como a um refúgio,

Onde posso estar em companhia na minha solidão,

Relembro velhos desejos, amestrados pelo cansaço,

A agonia de amores perdidos, pouco resta no copo,

Um vestígio de espuma, a ideia de uma sede

Que nem sede era, uma fome que rasga e morde

E engole, na mesa ao fundo, a loira com camisa

De flanela lê, a cerveja a meio, leva-a aos lábios,

Apoia no punho toda a concentração do mundo

Naquele livro, por momentos apaixono-me,

Mas depois olho o relógio, o próximo autocarro

Parte em dez minutos, nunca há tempo para saltar no abismo.

 

Turku

 

08/01/2025

 

João Bosco da Silva

quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

 

Matéria Onírica

 

Lentamente se dissipa o nevoeiro,

Os sonhos tornam-se mais claros,

Apenas sonhos, em que tento ver

Se também as coisas neles,

São feitas das mesmas partículas

Do mundo real e se o são então

Quão real realmente o real é,

Se o sonho mostra a mesma clareza,

Uma cidade inteira, ruas que nunca vi,

Arranco um cartaz colado a um edifício

Que o meu cérebro construiu,

Com uma arquitectura clara,

Uma pintura perfeita, numa parede rugosa,

Rasgo o papel, e no rasgo os mesmos filamentos,

A fibra da pasta, pudesse eu ver

Microscopicamente e talvez,

Moléculas, átomos, num mundo onírico,

Sei que é um sonho, exploro a sua

Natureza, com a pressa de uma primeira vez

Que se sabe também última,

Aceito beijos sem remorsos, agarro tudo,

Em breve sairei deste sonho para outro.

 

02/01/2025

 

Turku

 

João Bosco da Silva

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

 

Crónica de Ano Novo

 

Noite de ano novo, as passas já se digerem,

Lavadas com champanhe, doze desejos,

A ilusão de que se concretizem,

Quando não se dá sequer o primeiro passo

Para chegar à mudança que se pede,

Na televisão, há anos silenciosa, mais do mesmo,

Alguém grita num dos apartamentos do prédio,

“Hei, Hei, Ajuda”, em finlandês, parece vir de cima,

O pedido repete-se, ainda se ouvem foguetes,

“Os finlandeses quando pedem ajuda, é porque precisam mesmo”,

Diz-me a minha companheira, alguém está realmente aflito,

Saio à procura da origem daquele grito,

No andar de cima, silêncio, em baixo a televisão,

O pedido torna-se quente, mais dois andares em baixo,

É certamente o velhinho que mora sozinho,

Vi-o uma vez de andarilho, segurei-lhe a porta

E fingiu nem me ver, bato à porta e confirmo,

Tinha caído, sozinho, na noite de ano novo,

Ligo às autoridades, passados minutos, vêm em auxílio,

Então regresso à minha caixa, invisível,

E continuo no champanhe, mais duas "ginebras"

Lembro-me por alguma razão do Leopoldo María Panero,

Quantas vezes no trabalho recebemos quem fica no chão dias a fio,

Rabdomiólise, hipotermia, hipernatremia, insuficiência renal,

Úlceras de pressão, necrose, acidose metabólica, hipoglicemia,

E tanto mais nos pode trazer a solidão de uma simples queda,

Hoje enquanto comia a meias uma tangerina com a minha filha,

Olhando a neve fresca deste ano novo,

Esboçava mentalmente esta pequena crónica de ano novo,

Pareceu-me um poema, mas afinal é apenas isto.

 

01/01/2025

 

Turku

 

João Bosco da Silva

terça-feira, 31 de dezembro de 2024


 

Cem Anos de Solidão

 

Aos dezasseis anos li Cem Anos de Solidão,

Vinte e três anos depois vejo a série,

Com aquelas paisagens fantásticas,

Aqueles corpos como chocolate de leite e sal,

O mesmo realismo mágico, mas dado,

Sem esforço do imaginário, dou-me então conta

De que vejo tudo novamente, por outros olhos,

O limite da minha experiência,

É o limite da minha imaginação,

Hoje se relesse o livro, estou certo de que as paisagens,

Apesar das mesmas palavras, da mesma descrição,

Seriam outras, mais amplas, mas não necessariamente,

Mais extraordinárias, existia um espaço maior,

Entre a matéria que constrói os mundos imaginários,

Um trabalho de construção de raiz,

Agora cada vez mais, é uma construção de retalhos

Emprestados a ecos dos passos que demos,

Ainda bem que, aos dezasseis, não conseguia imaginar

A salgada perfeição dos seios de Úrsula Iguarán.

 

31/12/2024

 

Turku

 

João Bosco da Silva

sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

 

Enquanto Dormes

 

Enquanto dormes no meu colo, meu amor,

Que os sonhos te sejam leves e limpos,

O mundo continua demasiado humano,

Sujo e injusto, o progresso só tornou a maioria

Em insignificantes números, carne para canhão,

Contudo, com a tua mão sobre o lugar onde talvez

Ainda se esconda o meu coração,

Sinto que te sou seguro e por trás dessas pequenas

Pálpebras, o sonho decorre nesse teu mundo pequeno

E simples, que sejam borboletas, trevos no jardim da avó,

O raro sorriso do sol de inverno, gatinhos gregos,

Que nunca te contaminem os pesos e pesadelos

Que os homens aos homens se impõem,

Nascemos para poder pouco, meu amor,

A vida não tem sequer o valor da sua utilidade,

Nesta sociedade de gordos vampiros, buracos negros

Oligarcas, resta-nos um colo quente e um sono puro,

O sol e a promessa universal do derradeiro silêncio.

 

Turku

 

20/12/2024

 

João Bosco da Silva

quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

 


Oásis

 

Trocar o azul turquesa por um charco verde

Onde coaxam as rãs e a tua carne viciosa,

Liras viscosas, confettis de papel higiénico

Atirado com a pressa furtiva de um farol

Que passa e mergulha na noite onde moram

Todos os desejos viscerais e verdadeiros,

Fosse eu sincero nisto tudo e comigo mesmo,

Seria o rei da pocilga, mas por delicadeza

Tenho perdido, também eu, a minha vida,

Tantas vezes a fome daquilo que se confessa

Apenas no silêncio de um vazio enorme,

E se absolve num suspiro resignado

De quem perdeu dentes para tanta fome.

 

19/12/2024

 

Turku

 

João Bosco da Silva

quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

 

Pedra no Sapato

 

Todas as manhãs acordo com uma pedra no sapato,

Com a boca seca de sonhos, no quarto um cheiro

Defunto das glórias que deixaram de ser minhas,

Uma sombra constante, dando a cor de perigo ao gelo

Que dará o acompanhamento aos passos arrastados,

Todos os dias a nudez fantasmagórica das bétulas

Me relembram a imagem que o espelho me cospe na cara,

Acumulamos tanto no que somos, para depois

Não termos força suficiente para tanta ausência,

Mais um verso não vem acrescentar nada mais

Que um vazio que ficou por não ser, dito nele mesmo,

Tocam-se com olhares quase vegetais, os que passam,

Tão anónimos que quase não existem verdadeiramente,

Nem um cheiro desperta as rupestres recordações,

Verões que como sonhos que se trazem ainda meio

Agarrados quando se acorda e se dá conta, uma vez mais,

Da pedra no sapato, da evidência estranguladora do hoje,

Só o cabelo cresce inversamente proporcional

Às possibilidades e brancos são os sonhos,

Como o futuro dos amigos que partiram para sempre.

 

Turku

 

18/12/2023

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

 




Ponto de Situação

 

Perguntam-me se ainda escrevo

“Ou agora é só vinho”, escrevo, escrevo

Se calhar agora melhor do que nunca,

“Mas já não publicas livros”, é verdade,

Já não me publicam, ou é porque não há papel,

Ou não há estofo para as minhas idiossincrasias

E falta de paciência para o circo de pulgas amestradas,

Também os meus quase quarenta anos

Já não humedecem ninguém,

Não sou novo, nem novíssimo e nunca fui genial,

Escrever, bem ou mal, qualquer um escreve,

Fazer vinho, bom ou mau, é só para quem pode,

Ainda escrevo, a razão nunca se perdeu,

Mesmo que uma das razões primordiais

Se tenha divorciado e deixado de comer o que mexe,

Também eu agora não prego o dente a tudo, dou-me menos,

Vejo mais, melhor, o cansaço sempre me acompanha, escrevo,

Para quem escrevia antes de me meter em papel,

Que nunca ninguém leu, porque já tinha jantar marcado,

O resto, o resto é poupança de papel e outras contaminações.

 

25.11.2024

 

Turku

 

João Bosco da Silva