Canção Lógica ou Ode A Vós
Encheram-me com o entulho da civilização
E agora chamam-me gente.
Tive profundidade no olhar espaço dentro
Com braços até ao infinito, capaz da novidade,
De sentir a luz de outro dia como nova.
As flores tinham cor para que eu as achasse belas
E essa era a razão de todas as coisas serem como são.
Os rios tinham pontes para eu ter medo ao atravessa-los,
Medo de abismos sem fim com criaturas possivelmente reais
E por isso tão fantásticas.
Dizem que vazio, que incompleto, que página em branco,
Eu digo que sim, agora sim,
Mãos que só conseguem o vazio, que nunca chegam, página onde se desistiu do impossível.
Obrigaram-me a tudo, até a um deus.
Nem isso me deixaram criar, já o tinham criado,
Há muito tempo, quando a civilização também criança, prestes a perder a inocência.
Queria tantos deuses, dos que sorriem e não têm a agonia nos olhos,
Dos que vivem porque é bom viver e há flores,
Deuses sem madeira nas costas a criar símbolos, futilidades.
Tinha o poder criador capaz de deuses novos, frescos,
Com mais sentido, mas obrigaram-me ao deles,
Acima do homem e de todas as coisas visíveis e invisíveis, impossível,
Capaz pela mão do homem de atrocidades cegas.
A tradição, a tradição criança, mata-te.
Obrigaram-me a matar completamente a crianca em mim
Para conseguir livrar-me do vosso crucificado
E outros símbolos irracionais, ridiculamente mais importantes que a vida.
Lá por terem os pêlos todos no corpo
E a culpa de se tocaram na alma,
Não quer dizer que a criança que acredita tenha morrido.
As crianças sem inocência, das que carregam armas e ignorância,
Acorrentadas a uma cegueira adulta.
Deram-me tudo, tudo já feito, já inventado,
Já imaginado, já criado,
A mim que era o inventor de um novo mundo,
A matéria-prima para um universo melhor.
Cortaram-me a infância, amputaram-me a inocência
E tornaram-me em gente triste.
Crescer é tornar-se triste e sem imaginação.
Os olhos tornaram-se duplos vendo segundas intenções em tudo,
Significados em tudo além da verdadeira significação,
Símbolos por todo lado a provar que somos gente.
Meteram-me tudo em caixas, rotularam-me tudo,
Fizeram-me negar o que lhes parecia errado,
Só porque estava na caixa errada,
Na caixa onde alguém muito morto colocou.
Ergueram-me paredes com leis escritas,
Ecos de regras ridículas, enforcaram-me a liberdade,
Para que fosse gente.
Crescer é perder a liberdade original e real.
É porque tem que ser, dizem-me.
É porque também os outros, obrigam-me.
E um dia eu terei que lá chegar,
Onde eles não esperam, eles sempre um passo à frente,
A serem sempre maiores, mais sabedores das verdade que criam,
Donos das leis que criam para os que vêm atrás.
Eu cada vez mais a invejar os cães,
Até os que me morrem e os choro como mais um pedaço da minha infância perdida.
Tudo o que me sabia bem,
Tornaram-no em pecado, trancaram-no com a culpa.
Ofereceram-me o cinto de castidade da liberdade,
A culpa, obrigado.
Até as flores quase pecado olha-las.
Até os rios quase pecado senti-los no corpo,
Inferno se sentir o corpo no corpo à beira-rio.
A gente é falsa e dissimulada,
Come às escondidas a luxúria da sua gula
E tranca-se em portas grandes e frias.
Sê gente, dizem-me. Precisam de companhia nos seus jogos.
Para quê a culpa e a invenção do pecado?
Tudo em caixas.
Quem comeu os chocolates para deixar as caixas vazias?
Torna-te gente, gritavam-me.
Eu, que só queria que me deixassem estar, a ser,
Sentir porque me sabia bem,
Sem querer saber que tinha um nome aquilo,
Se tinha uma etiqueta, um lugar numa caixa.
Nunca pedi a ninguém o manual de intruções para a vida,
Mas vieram logo entregar-me um, com uma página nova todos os dias,
Como se alguém já me tivesse vivido.
Como me querem ensinar a viver a minha vida,
Se nunca ninguém viveu a minha vida?
Eles a quererem que me torne neles,
Me junte a eles naquela massa disforme,
Onde já não há indivíduos, só pedaços de um monstro maior.
Encheram-me com o entulho da civilização
E agora chamam-me gente.
Eu como a gente a fazer o que esperam de nós,
Como animais amestrados e eles a chamarem-me inteligente e esperto,
Só porque macaco de imitação,
Só porque dou passos atrás deles, cego.
Até deus criaram à sua imagem e semelhança
E o que não for semelhante a eles não é gente.
Não te mates, é pecado.
E o suicídio é a única carta de liberdade que me resta.
Na verdade, já morri, só o corpo a acolher o entulho,
Que pelos anos fora me foram lançando,
Asfixiando o que realmente fui e viveu,
Antes de me obrigarem a ser gente.
Obrigaram-me a ser gente
E nem me deixaram despedir de mim,
Daquele com o infinito no olhar,
Com mãos capazes de tocar na vida como se a primeira vez,
Todas a vezes.
Adeus ó não-gente que fui,
Coberto pelo entulho da civilização,
Civilização lixo de civilizações mortas,
Monstro de retalhos putrefactos e nós nisto,
Eu nisto.
Deixo cair a alma,
Uma mancha pequena e negra,
Um ponto-final.
07.04.2010
Savonlinna
João Bosco da Silva
Encheram-me com o entulho da civilização
E agora chamam-me gente.
Tive profundidade no olhar espaço dentro
Com braços até ao infinito, capaz da novidade,
De sentir a luz de outro dia como nova.
As flores tinham cor para que eu as achasse belas
E essa era a razão de todas as coisas serem como são.
Os rios tinham pontes para eu ter medo ao atravessa-los,
Medo de abismos sem fim com criaturas possivelmente reais
E por isso tão fantásticas.
Dizem que vazio, que incompleto, que página em branco,
Eu digo que sim, agora sim,
Mãos que só conseguem o vazio, que nunca chegam, página onde se desistiu do impossível.
Obrigaram-me a tudo, até a um deus.
Nem isso me deixaram criar, já o tinham criado,
Há muito tempo, quando a civilização também criança, prestes a perder a inocência.
Queria tantos deuses, dos que sorriem e não têm a agonia nos olhos,
Dos que vivem porque é bom viver e há flores,
Deuses sem madeira nas costas a criar símbolos, futilidades.
Tinha o poder criador capaz de deuses novos, frescos,
Com mais sentido, mas obrigaram-me ao deles,
Acima do homem e de todas as coisas visíveis e invisíveis, impossível,
Capaz pela mão do homem de atrocidades cegas.
A tradição, a tradição criança, mata-te.
Obrigaram-me a matar completamente a crianca em mim
Para conseguir livrar-me do vosso crucificado
E outros símbolos irracionais, ridiculamente mais importantes que a vida.
Lá por terem os pêlos todos no corpo
E a culpa de se tocaram na alma,
Não quer dizer que a criança que acredita tenha morrido.
As crianças sem inocência, das que carregam armas e ignorância,
Acorrentadas a uma cegueira adulta.
Deram-me tudo, tudo já feito, já inventado,
Já imaginado, já criado,
A mim que era o inventor de um novo mundo,
A matéria-prima para um universo melhor.
Cortaram-me a infância, amputaram-me a inocência
E tornaram-me em gente triste.
Crescer é tornar-se triste e sem imaginação.
Os olhos tornaram-se duplos vendo segundas intenções em tudo,
Significados em tudo além da verdadeira significação,
Símbolos por todo lado a provar que somos gente.
Meteram-me tudo em caixas, rotularam-me tudo,
Fizeram-me negar o que lhes parecia errado,
Só porque estava na caixa errada,
Na caixa onde alguém muito morto colocou.
Ergueram-me paredes com leis escritas,
Ecos de regras ridículas, enforcaram-me a liberdade,
Para que fosse gente.
Crescer é perder a liberdade original e real.
É porque tem que ser, dizem-me.
É porque também os outros, obrigam-me.
E um dia eu terei que lá chegar,
Onde eles não esperam, eles sempre um passo à frente,
A serem sempre maiores, mais sabedores das verdade que criam,
Donos das leis que criam para os que vêm atrás.
Eu cada vez mais a invejar os cães,
Até os que me morrem e os choro como mais um pedaço da minha infância perdida.
Tudo o que me sabia bem,
Tornaram-no em pecado, trancaram-no com a culpa.
Ofereceram-me o cinto de castidade da liberdade,
A culpa, obrigado.
Até as flores quase pecado olha-las.
Até os rios quase pecado senti-los no corpo,
Inferno se sentir o corpo no corpo à beira-rio.
A gente é falsa e dissimulada,
Come às escondidas a luxúria da sua gula
E tranca-se em portas grandes e frias.
Sê gente, dizem-me. Precisam de companhia nos seus jogos.
Para quê a culpa e a invenção do pecado?
Tudo em caixas.
Quem comeu os chocolates para deixar as caixas vazias?
Torna-te gente, gritavam-me.
Eu, que só queria que me deixassem estar, a ser,
Sentir porque me sabia bem,
Sem querer saber que tinha um nome aquilo,
Se tinha uma etiqueta, um lugar numa caixa.
Nunca pedi a ninguém o manual de intruções para a vida,
Mas vieram logo entregar-me um, com uma página nova todos os dias,
Como se alguém já me tivesse vivido.
Como me querem ensinar a viver a minha vida,
Se nunca ninguém viveu a minha vida?
Eles a quererem que me torne neles,
Me junte a eles naquela massa disforme,
Onde já não há indivíduos, só pedaços de um monstro maior.
Encheram-me com o entulho da civilização
E agora chamam-me gente.
Eu como a gente a fazer o que esperam de nós,
Como animais amestrados e eles a chamarem-me inteligente e esperto,
Só porque macaco de imitação,
Só porque dou passos atrás deles, cego.
Até deus criaram à sua imagem e semelhança
E o que não for semelhante a eles não é gente.
Não te mates, é pecado.
E o suicídio é a única carta de liberdade que me resta.
Na verdade, já morri, só o corpo a acolher o entulho,
Que pelos anos fora me foram lançando,
Asfixiando o que realmente fui e viveu,
Antes de me obrigarem a ser gente.
Obrigaram-me a ser gente
E nem me deixaram despedir de mim,
Daquele com o infinito no olhar,
Com mãos capazes de tocar na vida como se a primeira vez,
Todas a vezes.
Adeus ó não-gente que fui,
Coberto pelo entulho da civilização,
Civilização lixo de civilizações mortas,
Monstro de retalhos putrefactos e nós nisto,
Eu nisto.
Deixo cair a alma,
Uma mancha pequena e negra,
Um ponto-final.
07.04.2010
Savonlinna
João Bosco da Silva
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