sexta-feira, 28 de maio de 2010


Momento Trazido

de Bragança

Sentado num muro à espera, com o Sabor em frente,
O Eça a fazer-me companhia, na cidade onde nasci,
À espera que venham do médico para regressar.
No meio da rua adormecida pela hora de trabalho,
Com os carros que passam atrasados, sempre atrasados,
Sempre a chegar onde nem vale a pena pensar,
Com o livro, inclinado sobre o papel, quase lá dentro,
Não fosse a brisa primaveril e os passos no passeio.
Será que um dia lhe saberei o nome, a ela que passa?
Deve ser da minha idade, uns quase dezassete,
Também deve andar a ser Eça e pensar que os seus problemas
São tão grandes, enquanto o rio passa e vai para longe
De onde eu nasci.
E o próximo ano será o último, depois, depois tão longe
Do que imagino, perdido em ruas ainda mais desconhecidas
Que estas da cidade onde nasci.
O castelo, sei tão pouco sobre o castelo, sobre o Gungunhana,
Só que deve ter sido alguém muito grande para ter as calças num museu.
Sei que gosto e me faz lembrar tempo que nunca vivi,
Mas que alguém viveu até eu nascer nesta cidade,
Como se toda a história do mundo fosse para eu estar aqui,
A ler Eça, que certamente escreveu este livro para não estar só
Enquanto espero que venham do médico.
Não tarda a avalanche de carne apressada e com fome
A caminho do cheiro das batatas fritas,
A dar-me movimento aos olhos para fora, só para fora.
Não tardo e chego a meio, depois mais umas tardes ao sol
E acabo a outra metade. Hoje não, hoje a hora do almoço está próxima
E ainda temos que atravessar a serra, a terra fria até casa.
A serra, verde, cheia de segredos e de casas vazias.
Um dia irei vasculhar aqueles interiores vazios,
Enquanto faço horas, como se fosse um criador de tempo.
Um dia irei vasculhar interiores vazios na companhia daquelas casas,
Sem me importar dos carros solitários que passam,
A caminho da cidade, ou regressando da cidade onde nasci,
Iluminando por momentos os suspiros e os gemidos nos vidros.
Que nome terá? Era bonita, o nome não interessa,
Mas qual será? Um dia direi que gosto dela: gosto de ti.
Não. Gosto do livro que leio. Nunca pensei, mas nunca o tinha lido,
Gosto desta cidade, que tão poucas vezes visito,
Apesar do cordão umbilical e da gente que passa e nem me faz ser.
A culpa é do cheiro do almoço e das prioridades,
Das pressas que não deixam ver, que não dão tempo à gente de ser gente.
Um dia quero voltar a visitar o castelo, a Domus Minicipalis,
Passar uma noite na serra a fingir amor, para que outra noite venha.
Afinal de contas todos nos sentimos sós, mesmo numa rua cheia de gente,
Onde ninguém dá por ninguém, enquanto esperamos, um olhar, um sorriso,
A esperança de um nome de olhos bonitos,
Uma recordação para levar pelo mundo fora,
Para quando um quarto fechado e estranho, apesar do nosso cheiro nas paredes.
Não estranho nada o tempo do livro, deve ser assim que se vive nas grandes cidades,
Lá longe, na capital, da qual só me lembro da gente esquisita,
Sem olhos, dos autocarros como concertinas, do sono nos barcos do rio largo,
Da forma de falar muito asséptica, dos bancos de jardim onde mora gente,
Das ruas tão grandes e cheias onde custa respirar,
O cheiro a alcatrão quente, os táxis com cheiro a pele e fumo,
O táxista simpático de bigode, como os imaginava,
Os olhares no chão de manhã, os olhares no chão...
Porquê os olhares no chão quando se pode levar o Eça
Para amparar o olhar?
Aqui ainda passam tractores, gente com enxadas às costas,
Um cavalo, ou um burro de vez em quando.
De onde virão os cavalos, ou acabei de ler algo sobre cavalos?
Os burros nem pergunto, vêm de todo lado.
As rãs? Quase as ouço, ou será uma noite de primavera sentado numa manta,
Fora da cidade à beira de um açude, a contemplar os dedos nas estrelas,
Enquanto as minhas ideias humedecem o ar?
O ritmo dos passos aumenta, os passo aumentam,
A gente nasce de todos os lados, na mesma cidade onde eu nasci,
São todos meus irmãos.
Sinto umas pontadas no estômago. Deve ser fome,
Ou saudades do que não poderei levar comigo,
Quando eles chegarem do médico e eu me for.
O velho da boina diz-me bom dia,
Parecia o meu avó, mas com boina, já deve ter almoçado.
Dá-me mais fome por saber que há quem não a tenha,
Sinto-me mal, pela quase inveja, olho o sol no rio para acalmar.
Regresso ao Eça, que se continuar à espera, não passarei da metade.
Eles que venham quando vierem, por enquanto espero,
Já com fome, pela hora do almoço tardio.

28.05.2010

Savonlinna

João Bosco da Silva

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