terça-feira, 28 de setembro de 2010



Acordar Tarde


Já é tarde até para os aromas que o fumo do cigarro engoliu,

Já é tarde mas os sapos continuam de olhos amarelos na luz da Lua

À espera que umas lágrimas chovam na despedida do dia.

É tão tarde que só o roçar dos lençóis, longe onde se adivinham dois corpos,

Onde se adivinham dois pés frios e um esquecimento no sentimento.

O frio não deixa que o ar agarre os cheiros das coisas,

No inverno gelado só cheira a branco, seja tarde ou cedo.

Os vidros do copo cansado espalhados pelo chão,

Que amanhã se acordará se houver vontade e para o fundo de uma memória azeda,

Que hoje já é tarde para levantar derrotas.

Noutro tempo, noutro lugar e já estaria a regressar o dia após uma quase pausa

De poucas horas, onde e quando nunca é tarde e deixa-te estar,

Vale a pena, deixa-te andar, chegarás lá, vem, estou à tua espera.

Agora não que já nem o hipocampo me dá o que sou longe,

Existo só porque penso que sou e a pedra também,

Só porque a penso como um limite e a atiro e a “náusea” a estas horas…

É tarde e Sartre já dorme há anos, há anos a atravessar o que se percorre num fechar de olhos

E é a eternidade, o infinito até nunca mais, num fechar estrábico de olhos: blink e já lá estás.

Por isso é tarde, por isso e por aquilo tudo que deixarás por fazer,

Mesmo que os gatos nunca cheguem a atravessar o caminho e encontrem o sapo

Com olhos a dar um tom amarelo à Lua,

È tarde para tudo o que ficou no dia, tarde para os beijos que ficaram no ar,

Tarde para o último adeus, tarde para mais um gole asfixiante para a insónia,

Tarde para o copo que vai no ar e já se vê em estilhaços, tarde para não pensar em ser pai,

Tarde para não ter dito que sim, ou que não (usem o não com moderação),

Tarde para olhar o céu da noite que arrefece tudo com os olhos fascinados e assustados

Pelo tamanho de tudo que lhes entra dentro.

É tarde e só agora abri os olhos e já cansado, vou adormecer para mais um dia,

Enterrando os sonhos que julgo ter tido como meias verdades só para dentro,

Relembrando os gritos que não se ouviram, só por ser tarde.

Não fosse este aroma a tabaco entranhado desde a língua até à ponta dos dedos,

Tão forte como a morte, tão inocente como outra planta qualquer,

E sentiria no ar o cheiro do canto dos galos, da terra a deixar de arrefecer

E se torna azulada, o cheiro do corpo adormecido com quem não me deitei,

O cheiro da porta do café da esquina a abrir e das vassouras a abrir caminho por entre as beatas,

Da padaria a abrir as portas e do autocarro a atravessar as aldeias, vilas e cidades.

É tão tarde a estas horas que o melhor é nem ser até mais logo.


28.09.2010


Torre de Dona Chama


João Bosco da Silva

1 comentário:

  1. "usem o não com moderação" . Tarde para mais logo, porque o tempo é intrinsecamente injusto.

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