sexta-feira, 24 de setembro de 2010


Palidez De Um Black Label


Nem o Johnnie Walker Black Label me irá salvar da consciência de que isto,

Sei lá onde me sento, não tem o mínimo sentido, a mínima razão para continuar a ser.

Acordo e é só mais um dia para levar até ao fim, contrariado.

Já nem sinto os paralelos, tão batidos pelo tempo, pelos meus pés de outro tempo,

Batidos, batidos a janelas semi-abertas e gente a ressonar no seu sono de duas da manhã,

No seu sono de duas da manhã a duas da manhã e nem acordam,

Fecham-se caixões e o sono continua, só o ressonar cessa.

Raios partam que só os cães têm voz a esta hora! Só os paralelos me respondem ao que nem sei,

Só as estrelas, com a sua luz longínqua, me dão mais um passo tímido e sem vontade.

Dói-me, dói-me tudo como o peso de tudo que deixei por uma ilusão,

Que sabia antes do erro, ser uma valente cegueira de saudade, quando no fim de contas…

Uma insónia que é paga a anos de vida a cada minuto que passa,

Que se sente, em ecos de enlouquecer multidões, a cada segundo no Swatch negro comprado em Zurique na despedida até ver.

Isto nunca será real, não esta vida consciente. Venha o que vier, pode abalar o corpo também,

Mas que venha! Posso ter vivido noites no fim do mundo, noites de inferno numa vida que nem para isso caminha,

Que ninguém vê, ninguém sentiu e só eu caminho com o saco às costas que tão pesado,

Mesmo que o vinho ainda nem fermente. Querem dormir, mas já estão a dormir,

Desde que acordaram neste mundo. Olhos abertos, quem os tem?

Black e nem assim me dá gosto a vida a estas horas, depois de os cães que só a mim me ladram,

Depois das casas vazias cheias do sono de quem desconheço, só sei mesmo o nome.

Vamos, dizem-me. Estamos a ir ou ainda não te deste conta, nem digo. Para quê?

Vamos lá que já sinto o que tem levado os antepassados que não conheci.

Vamos lá que o tempo chama e eu nem sei quanto tenho, só quero ir enquanto der para ir.

Tantos grandes nestas horas e eu só, eu menos do que o que acreditei ser quando acordei sem vontade,

Sem vontade: como poderia ter vontade numa manhã fria e cheia de nuvens em Setembro?

Só o nada espera por mim, mas aí sei que serei, serei grande, mudo mas grande:

Quem não ouviu, está morto e nunca vai viver. Já passa das duas, o tempo não espera

Por quem passa a correr e nem quer ouvir, nem quer perder tempo porque tem pressa do fim.

Sigam então, que os paralelos vos levam no ritmo de pedra até ao jazigo com anjos para a família chorar,

Coitadinho era tão boa pessoa e ninguém vos viveu de verdade.

Os violoncelos chamam-me, de tão longe que nem quero acreditar que fui,

Mas fui e ninguém acredita que eu além da verdade que só se conhece,

Apesar de muito além disso o mundo, a vida, a carne que se rasga e é tão doce,

Que escorre e se sorve com vontade e prazer e se sente nos gemidos, tão sincera, sem esperanças.

Só se pode ser sincero quando a esperança de nada nos toma a mão pela escuridão.

Sorrisos que me tocam como moscas numa manhã quente que passou,

Depois de uma noite de insónia até além das duas da manhã da minha vida:

Hoje vejo que o Sol não demora a amanhecer mais um dia que eu não pedi.

As ruas de Savonlinna acompanhavam-me com o ranger do meu peso na neve,

As ruas do mundo rangem com o peso da minha leveza no tempo de cada passo

E tudo é kitch e tudo é vida além do bem e do mal. A arte fica em casa a dormir

Entre duas omoplatas e o que vem de mais acima, com ou sem maresia, esteja vento ou cheiro

À expectativa de sexo, seja ele de palavras bafientas ou de carne extrema além de sonhos impossíveis que se sentem.

Amesterdão chama-me a gritos arrastados, com uma vontade de cinza e tulipas que nunca vi,

Quando nem quero saber das urzes que me fazem os ossos tão rústicos e deste país.

Não quero saber, não hoje às duas da manhã, quando já o Sol me diz que já não vou dormir mais uma noite,

Quando o Black Label me diz: lê mais um poema do José Agostinho Baptista.

Não, hoje não. Chega-me de estar longe de mim, chega-me não me ter encontrado dentro de ti,

Sempre tão longe, tu, vizinha do meu coração, sempre longe nas noites infantis.

Hoje nem a tentativa de um Hunter S. Thompson, tão longe da realidade

Que só um pode encontrar dentro dele, quando tão longe dentro onde se julgava impossível.

Multidões de paralelos de granito nos pés que me falam directamente nos cães

Que eu sou quando a gente ressona, e nem gente é, mas sonhos:

Arte é o que se faz quando o Black Label nos diz que a vida não é tão pouco, não pode ser tão pouco,

Mas é e o sono diz: aguenta que a manhã já te trouxe as moscas e tu ainda respiras.


24.09.2010


Torre de Dona Chama


João Bosco da Silva

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