Regresso Ao Admirável Mundo Novo (Não o de Aldous Huxley)
Ficção paranoide e
distopia sem enforcamentos,
Ainda as manhãs de Junho eram possíveis sem despertador, o
negrilho estava
Longe de secar, e cada moeda era quase tudo, o quiosque
ainda não tinha sido
Arrancado pelo progresso, e no jardim antigo ainda se via
gente,
Num bolso as moedas que se juntaram da mesada para o
pequeno-almoço
Na escola, é para comeres um bolo, dizia a mãe antes de sair,
No outro bolso um saco de plástico preto para esconder o
pecado,
Dentro do quiosque aquele cheiro a papel delicioso como a
pão fresco,
Lá fora as revistas penduradas com molas da roupa e os jornais
sob
Pedras para não tomarem asas, ignorava os horrores que
aquelas
Páginas revelavam diariamente, ao fundo, numa caixa de
cartão
Lá estavam, as revistas de banda-desenhada, quinhentos
escudos,
Compro duas e sinto-me com uma estranha culpa ou medo,
Terei que me confessar, só pode ser pecado, o dinheiro que
era
Para comer, gasto num luxo, num vício, despeço-me do senhor
J,
Enfio as revistas no saco preto, não antes de as abrir e
inspirar
Fundo aquelas páginas frescas, mostro uma à mãe, a outra
Escondo-a directamente debaixo da cama, junto das outras,
Sei que ela não aprova, mas a sombra do negrilho não se interessa,
Os deuses esperam, o futuro espera, cheio de traficantes de órgãos,
De implante de chipes de crédito, raptos para te
transformarem num
Actor do teatro da dor, o futuro que tem chegado tem teatros
do ridículo
E teleimplantes de futilidade aumentada, lobotomias por
reforços positivos
Que resultam no desenvolvimento do volume do indivídio inversamente
Proporcional à capacidade cognitiva, o uso do endeusamento
de figuras
Destituídas de valor para disseminar a alienação usando a
receita de Watson,
A venda pelo medo, do
medo, oscilações do mercado de acordo com o pânico
Pandémico, as competências artísticas herdadas geneticamente
Ou injectadas em salões de ópio e casas de putas pedantes e
eruditas,
Neste futuro presente, tão pouco de ciberpunk, hoje, aquele
outro futuro distópico
Parece-me uma utopia, não se perseguem mutantes porque ainda
não surgiram,
Perseguem-se uns aos outros, por pensamentos, actos e
omissões,
Por culpa e sem culpa, escravos das ideias de líderes e
fanáticos, escravizam,
Séculos depois de Libertatia, este futuro, onde andam os vírus
informáticos conscientes,
Discórdias cibernéticas, bites desperdiçados em vez de
sangue derramado,
O transplante de cérebro é uma das poucas previsões certas,
Bastante eficiente para erigir exércitos de idiotas
consumistas,
Hamsters no moda, correndo numa roda, uma fonte energética
Vital para o funcionamento do movimento de rotação da terra,
O Miguel O´hara tão real quanto o Super-Homem de Nietzsche,
O superação do animal e do humano pelo corporativo, eis o
futuro,
Hoje é quase inverno, as revistas acumulam humidade, o papel
Cheira a mofo, se o inspiro fundo arrisco-me a uma pneumonia,
Se vivo muito, arrisco-me a morrer, estava bem melhor além,
Naquele Junho, longe deste futuro, não tão longe assim,
apesar de tudo,
Debaixo do negrilho que secou, a ver o futuro aos
quadradinhos,
Que apesar de distópico, não se aproxima da palhaçada
Em que isto tudo se tornou, faltam cabines de suicídio para
aqueles
Que se julgam eternos e uma indução da ideia para bem e
alívio
Dos que são perseguidos por esta geração de inquisição
mutante
E transvestida pelos
ares da modernidade e do progresso,
Camuflando-se e confundindo-se com os nossos desejos
E necessidades, somos um mutante híbrido, um apêndice
iludido
Com ideias de livre-arbítrio, revejam-se os ensinamentos de
Tyler Durden.
18.10.2099
Nova Prospekt
João Bosco da Silva
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