quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

“Sinais de Fogo”

 

Depois de enterrarem o putrefacto cão assassinado,

Foderam sobre aquela mesma terra revolta,

Sem outra pinga de amor além do esperma

Vertido que a criada Maria cobrira de terra e rezas,

A morte como a vida, sacode-se com a mesma facilidade,

Merda e pó, a mesma massa universal,

Fonte de todos os medos e desejos,

Dependendo apenas da delicadeza de cada um.

 

28.12.2022

 

Turku

 

João Bosco da Silva

 

 


quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

 

Primeiros amores e Música Pimba

 

Escrevi há umas semanas uma ideia para um poema num papel,

Encontrei-o hoje, surgiu-me ao ouvir uma música da Katie Perry,

Que me levou a uma música da Micaela e daí a uma tarde

No ciclo, na qual a paixão da quarta-classe junto à rede

Perto do cemitério da vila, me disse num furo, que eu mudo

De amor como quem muda de camisa, porque andava

Apaixonado por uma miúda do 5º ano chamada Alice,

Nós no 6º ano, novamente na mesma turma,

Hoje encontrei este papel num bolso duma camisa,

Pareceu-me uma ideia ridícula, mas todos os poemas o são,

Também a vida o é, um aglomerado grotesco de ridículos,

Empurrando-nos até ao hoje e ao agora, somos essencialmente

As mentiras que contamos tão alto que ecoam nos outros

E se entranham nas nossas certezas, tanto que no 7º ano,

De facto, mudei de camisa, como voltei a mudar

Em cada um dos anos que se seguiram, mas havia uma constante,

Uma nódoa que persistia na pele e à qual aprendi a chamar de amizade.

 

21.12.2022

 

Turku

 

João Bosco da Silva

domingo, 4 de dezembro de 2022

 

Visita à Biblioteca de Adriano

 

“é terrivelmente difícil amar estátuas em ruínas”

Tatiana Faia

 

à Tatiana,

 

É difícil compreender o número de catástrofes

Que acumulamos ao longo da vida,

A persistente ruína de carne em que nos tornamos,

Após incontáveis apocalipses pessoais,

Terminam amores tão sólidos como as colunas

De um templo, que um agricultor usou

Para proteger a vinha do ar salgado,

A fé salta de ilusão em ilusão,

Dependendo da crença em moda ou medo,

Com sorte, o nome de uma rua permanece,

Imutável como um nome próprio,

Irreconhecível para quem a baptizou,

Levamos ainda o colapso de todas as civilizações

E isso sente-se na saudade pelo que nunca

Vivemos na carne e sentimos apenas no sangue

O silêncio que o tempo impôs às pedras,

Dura mais um momento que a vontade de eternidade,

A visita numa tarde quente à biblioteca em ruínas,

Que distante revisitarás, no livro da mesma poeta.

 

04.12.2022

 

Turku

 

João Bosco da Silva

 

Arrefecimento

 

“habituámos-nos a que

nos esqueçam”

Yannis Ritsos

 

Quando a fome te despe os sentidos e suavemente

As primeiras geadas te visitam a solidão,

É porque chegou o tempo das fogueiras e dos segredos pagãos,

Despertam lentamente os sonhos antigos,

Como quem acorda com a boca pintada pelo vinho

Que um avô morto pisou, friamente cintilam as estrelas

Como o mais belo copo de cristal vazio,

Numa manhã de sede maior, em que o despertador,

A faca do coveiro que abre caminho ao sangue,

Do coração do porco cevado à bacia de plástico,

Chega o inverno que nunca esqueceste e o verão,

Que ainda ressoa na pele, mora agora num canto esquecido

Na companhia dos mitos da infância e dos amores frios.

 

Turku

 

15/11-04/12/2022

 

João Bosco da Silva