domingo, 10 de abril de 2022

Continuar a Tentar Ser Algo que Nunca Fui

 

Um dia Paris, ou outra cidade qualquer com que se fazem

Os clichés, e nos longe, sempre, todos os reecontros impossíveis,

Os aeroportos fechados por causa de algo demasiado real

E próximo como uma pandemia ou uma guerra, não há mais

Tragédias que existam apenas na ficção ou nas histórias dos velhos,

Até a morte do melhor amigo, que mais desta vida,

Que mais nos arrancará os ossos sem tocar na pele de tik-tok,

Ou a merda com que enchem os olhos nestes dias,

Tenho a idade para ter inventado meia-dúzia de deuses,

Ou ter-me tornado num profeta, para santo já sou demasiado velho,

Como sou velho para sonhar novos sonhos, mesmo até

Para ressuscitar os que a vida tornou obsoletos ou infantis,

Ao que parece, as Syrah, estão a rebentar, quem diria,

Ainda consigo criar alguma vida, mesmo num papel de deus,

Sem tocar, sem abrir a terra, sem puxar a água, distante,

Será esse o meu epitáfio, “foi distante”, e nada me descreverá

Com maior fidelidade, mas nós longe, há demasiado tempo,

É estranho, como o que foi perfeito durante umas horas,

Foi mantido durante décadas impossível, como se o mundo

Em risco, enquanto consumíamos a escuridão de uns quartos

Alugados numas cidades ignoradas pelos alvos das ogivas nucleares,

A estas horas, começar um poema parece-me tão ridículo

E ao mesmo tempo é tudo o que posso fazer, para provar que vivi

E estou vivo e perdi a força para dizer não ao impossível,

Cheguei ao tempo em que o real me leva o melhor amigo

E o amor é algo que todos os dias me convenço que é o que for,

Um copo vazio, uma garrafa vazia, uma varanda um cemitério,

Um dia Paris, como Londres foi uma despedida que durou

Menos de um ano, ou mesmo o Porto, onde me despedi de mim,

Ridículo para sempre, tornar vergonha em aversão,

Um dia Paris, ignorando os fantasmas, a pele das mãos

Que já longe dos vintes, o cansaço que tão ávido se apresenta

Para tomar conta do resto dos dias, os grilos que tanta falta fazem

Nas noites quentes, mesmo quando só queremos olhar o céu

E ver pedaços de pedra rasgar o firmamento com riscos de luz e nada,

Esse ridículo maior de continuar a tentar ser algo que nunca fui.

 

10.04.2022

 

Turku

 

João Bosco da Silva


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