quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Ode À Sombra

Escreve-se sempre à sombra do que já foi escrito, mesmo à noite quando o Panero olha
A Lua como se fosse um olho e por dentro uiva afiando versos e a agulha para depois
Coser a boca dos sapos, enquanto esmaga baratas com os pés para duendes desdentados,
Escreve-se sob a barba de Sebastião Alba, que o veste de abandono e loucura nos olhos
Que só olham para fora, as putas, à mesma hora, contando com o dinheiro roubado
À caixa do dinheiro das alminhas do purgatório, dirigem-se ao local de venda do corpo
Para sustentarem os luxos do dia, há dignidades que se vêm e brilham mais do que uma
Consciência limpa, mais vale a sombra, da barba de Walt Whitman ninguém fala, talvez
No supermercado, na zona dos legumes ou perto dos lacticínios, à tarde é melhor nem
Sair de casa e ficar a amansar plexus e esticar circunvoluções com a televisão generalista,
Queimar mais um dia até que venha mais um livro do Bukowski, de poemas, nada melhor
Para o Sol do meio-dia na ressaca de um Verão desperdiçado em adiamentos e derrotas
Predefinidas, já ninguém salta da ponte, nunca foi branca, mas culpam os romanos, esquecem-se
Das silvas que lhe dá o ar selvagem que merece, também o Rilke me aborreceu ligeiramente,
Mas deve ser comum a poetas sem fome, o jejum afia as agulhas e não há sapo que não fique
De boca fechada a engolir o que vomita, até vir uma pega para lhe comer o fígado e o deixar
Estripado ao Sol, não vejo o Céline a sujeitar-se a certas amizades e sacrifícios por fidelidade
E até prova em contrário, o futuro é sempre uma fome, nas ruas nunca se encontra uma amigo
Quando se caminha de bolsos ou coração vazio, só os cães não se desviam, da sombra, quando
Passa, já os gatos só lhe querem a ausência de luz, os olhos sensíveis de cabrões peludos
Egoístas têm preguiça de arroz, na Lapónia a noite de Inverno desperta sonhos de Verão,
Os pés arrefecem e ainda dizem que a viagem é só dentro, não é, tudo se passa à sombra,
Do que já foi vivido, mesmo que isso implique mudar um ou outro nome, para não ferir
Pessoas vivas ou mortas, reais ou baseadas nas possibilidades tão ou mais verdadeiras
E hoje um nome que custa encontrar-se na palidez de uma cara familiar que nunca mais
Nos irá sorrir, por causa da sombra, porque a miséria nos ensinou que se não podes estar
Sempre feliz, não és feliz, procura então a imperfeição na fotografia onde ambos sorriam,
De verdade, com sincera vontade, a fotografia que entretanto os olhos tornaram quase
Estranha ao espelho, com uma data por trás, no tempo de certezas hoje podres, ao Sol,
Numa cidade sombria, desde uma vila cada vez mais distante e ridícula, antes da aurora e do fim.

Torre de Dona Chama

09.08.2013


João Bosco da Silva

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