A Corrida Dos Invisíveis Antes De Horas
Correm quase invisíveis na sua pressa infeliz,
Já são não sei que horas e por isso atrasados,
Todos eles atrasados, convencidos de que um passo mal dado
Agarra o tempo que se perdeu e se perde, sempre,
Se escoa pelo ralo, passando pelos cabelos que caíram, os que se arrancaram,
Por serem brancos e sinais do tempo que passa,
Pelo ralo, num vortex que se ignora com a pressa nos pés.
Correm e saltam pelos paralelos metálicos e quentes como a borracha,
Deixando um ar desgastado ao dia, apesar de ainda não serem horas de tal,
Mesmo que a luz ainda esteja límpida apesar dos cheiros confusos,
Das horas que já passaram, que já se esqueceram.
Correm e eu não sei para quê, sei que há sempre tempo para lá chegar
E que é sempre demasiado cedo.
Quando o dedo percorre o horário dos comboios até ao fim,
Toca o relógio e já não haverá mais que o último que acaba de partir,
Haverá um amanhã que chegará a tempo, se ainda lá estiver à espera,
Com o vestido de hoje na brisa quente do verão da sua varanda,
A olhar, à espera, do atraso de mais um dia.
Correm e as pernas parecem que se esticam, ficam tão compridas,
Que eles lá em cima, a fazer sombra cá em baixo e umas pernas finas,
Que mal tocam o passeio, que atravessam a rua sem lhe deixar rasto,
Apressados para pousar a chavena de café, ainda quente e já vazia,
Despedem-se com um olá e mal se tocam, nem com os olhos,
Porque a pressa está sempre em frente, sempre em frente,
Como se não houvesse algo mais do que sempre em frente.
Nunca ninguém esteve lá à frente e é daqui que se pode ver isso,
Sempre daqui, que não serve para mais nada a não ser correr e ter pressa,
Para chegar aos cabelos brancos, às rugas, ao cansaço e às dores,
Ambas as dores e outras que julgavamos ser invenções dos que já cá estavam antes de nós,
Porque a gente sempre foi e sempre será gente, com pressa, sempre,
A correr para chegar antes que o jantar arrefeça,
Dormir à pressa antes que a cama aprenda a temperatura do corpo,
Tocar apenas o essencial para um orgasmo e dizer boa noite num silêncio de papel,
Agarra-se a roupa antes de ela cair no chão e já o suor está a secar,
Tudo à pressa, não chegue gente, não acordem os meninos,
Não acabe o tempo que se gasta com a pressa, com passos inúteis para chegar
Onde não interessa, onde há sempre tempo e se ganha a vida, perdendo a vida.
Não sei que sabedoria encerrará o das barbas compridas, sentado na relva do jardim,
Falando com as pombas, olhando os seres invisíveis, de mão estendida,
A pedir um olhar, um pouco de tempo, um alívio para a solidão de uma cidade
Que corre e ainda não são as tantas horas e ainda não chegou o próximo autocarro
Para a próxima paragem e mesmo assim, ofegar na sombra metálica da paragem,
À espera, com o cheiro de suores alheios, à volta, sem donos,
Partilhar o tempo com desconhecidos apressados, acompanhados de sacos, malas e jornais,
Alças de plástico que marcam palmas suadas, o peso de uma vida,
Ovos, pão, bananas, sabão, uma garrafa de vinho para acender a luz
Enquanto entram pela janela gritos dos vizinhos, das sirenes, do sol que se despede
E se vai triste por ninguém o ter sentido na pele, por serem todos invisíveis,
Correndo por entre os fios de luz, sempre pela sombra do seu interior,
Onde só se houve o tic-tac do relógio de parede, na casa vazia, que não espera, está
E ainda não são horas, ainda se escorre, se escoa e os cabelos transparentes no ralo.
05.07.2010
Savonlinna
João Bosco da Silva
Correm quase invisíveis na sua pressa infeliz,
Já são não sei que horas e por isso atrasados,
Todos eles atrasados, convencidos de que um passo mal dado
Agarra o tempo que se perdeu e se perde, sempre,
Se escoa pelo ralo, passando pelos cabelos que caíram, os que se arrancaram,
Por serem brancos e sinais do tempo que passa,
Pelo ralo, num vortex que se ignora com a pressa nos pés.
Correm e saltam pelos paralelos metálicos e quentes como a borracha,
Deixando um ar desgastado ao dia, apesar de ainda não serem horas de tal,
Mesmo que a luz ainda esteja límpida apesar dos cheiros confusos,
Das horas que já passaram, que já se esqueceram.
Correm e eu não sei para quê, sei que há sempre tempo para lá chegar
E que é sempre demasiado cedo.
Quando o dedo percorre o horário dos comboios até ao fim,
Toca o relógio e já não haverá mais que o último que acaba de partir,
Haverá um amanhã que chegará a tempo, se ainda lá estiver à espera,
Com o vestido de hoje na brisa quente do verão da sua varanda,
A olhar, à espera, do atraso de mais um dia.
Correm e as pernas parecem que se esticam, ficam tão compridas,
Que eles lá em cima, a fazer sombra cá em baixo e umas pernas finas,
Que mal tocam o passeio, que atravessam a rua sem lhe deixar rasto,
Apressados para pousar a chavena de café, ainda quente e já vazia,
Despedem-se com um olá e mal se tocam, nem com os olhos,
Porque a pressa está sempre em frente, sempre em frente,
Como se não houvesse algo mais do que sempre em frente.
Nunca ninguém esteve lá à frente e é daqui que se pode ver isso,
Sempre daqui, que não serve para mais nada a não ser correr e ter pressa,
Para chegar aos cabelos brancos, às rugas, ao cansaço e às dores,
Ambas as dores e outras que julgavamos ser invenções dos que já cá estavam antes de nós,
Porque a gente sempre foi e sempre será gente, com pressa, sempre,
A correr para chegar antes que o jantar arrefeça,
Dormir à pressa antes que a cama aprenda a temperatura do corpo,
Tocar apenas o essencial para um orgasmo e dizer boa noite num silêncio de papel,
Agarra-se a roupa antes de ela cair no chão e já o suor está a secar,
Tudo à pressa, não chegue gente, não acordem os meninos,
Não acabe o tempo que se gasta com a pressa, com passos inúteis para chegar
Onde não interessa, onde há sempre tempo e se ganha a vida, perdendo a vida.
Não sei que sabedoria encerrará o das barbas compridas, sentado na relva do jardim,
Falando com as pombas, olhando os seres invisíveis, de mão estendida,
A pedir um olhar, um pouco de tempo, um alívio para a solidão de uma cidade
Que corre e ainda não são as tantas horas e ainda não chegou o próximo autocarro
Para a próxima paragem e mesmo assim, ofegar na sombra metálica da paragem,
À espera, com o cheiro de suores alheios, à volta, sem donos,
Partilhar o tempo com desconhecidos apressados, acompanhados de sacos, malas e jornais,
Alças de plástico que marcam palmas suadas, o peso de uma vida,
Ovos, pão, bananas, sabão, uma garrafa de vinho para acender a luz
Enquanto entram pela janela gritos dos vizinhos, das sirenes, do sol que se despede
E se vai triste por ninguém o ter sentido na pele, por serem todos invisíveis,
Correndo por entre os fios de luz, sempre pela sombra do seu interior,
Onde só se houve o tic-tac do relógio de parede, na casa vazia, que não espera, está
E ainda não são horas, ainda se escorre, se escoa e os cabelos transparentes no ralo.
05.07.2010
Savonlinna
João Bosco da Silva
Depois dum conjunto de textos bucólicos ou saudosistas, onde jogavas entre uma terra campestre que foi tu na infância e um sentimento de deslocação e saudade, este texto é um corte.
ResponderEliminarApresentas um quadro urbano onde discutes o reboliço arrasador dos homens, que lhes rouba a vida em prol duma acção maior.
Gostei imenso :D